A pandemia da Covid-19: a era do vinho no mundo?
Apesar das novas sub variantes do ômicron, a BQ.1 e a XBB, a sensação que vivemos no Brasil hoje é que a pandemia da Covid-19 é coisa do passado. O uso de máscaras está liberado, as vacinações em dia e as aglomerações para os jogos da copa do mundo faz com que a gente constantemente fale da pandemia como um tempo distante. No entanto, a realidade é que, infelizmente, muitos ainda não se vacinaram e novas variantes não param de surgir mundo afora, fazendo com que o fim dessa pandemia pareça cada vez mais longe de nossos dias e que as incertezas para o amanhã sejam uma constante.
Enquanto o mundo não dá conta de acabar com a Covid-19, estudiosos já querem tentar entender qual foi impacto da pandemia em nossas decisões de compras e no nosso comportamento com alguns produtos. No segmento de vinhos aqui no Brasil, o que estava em todas as páginas de jornais durante os dias de lockdown era o aumento do consumo. Só se falava do quanto o brasileiro mergulhou de cabeça no vinho durante a reclusão, fazendo com que muitos acreditassem que a pandemia teria mudado de vez o jogo do consumo no mundo inteiro. Até hoje encontro enófilos em diversos eventos Brasil afora que afirmam que a pandemia mudou o jeito das pessoas se relacionarem com vinho para sempre.
O que muitos esqueceram de considerar é que existiram pandemias e pandemias. Cada tribos (as famosas bolhas) e culturas encararam a pandemia de maneiras diferentes e isso impactou o futuro da relação com o vinho de formas bem distintas também. Como boa curiosa que sou, não poderia deixar de pesquisar e contar para vocês o que eu descobri em diferentes países sobre a relação pandemia e consumo dos vinhos e quais as minhas percepções sobre este consumo no Brasil pós-era do vinho.
Pesquisas
Os memes nas mídias sociais nos fizeram acreditar que vinho era a bola da vez em 2020, no entanto, um estudo feito pela Wine Intelligence divulgado em janeiro desse ano mostrou que o aumento do consumo estava ligado a alguns itens sociais e culturais como: o quão confortável estava aquela população de retornar a suas atividades diárias, a disponibilidade e acesso aos vinhos nos canais de varejo de certa região, e as interações sociais existentes naquele local.
Em alguns mercados, como o caso icônico do Brasil e da Coreia do Sul, as vendas de vinhos dispararam. Curiosamente, o Brasil aparece com uma das nações que se sentiram menos confortáveis para voltar para suas atividades diárias. Dados da IWSR mostram que quase 70% dos brasileiros se sentiam desconfortáveis em voltar com atividades diárias durante a pandemia.
Quanto mais tempo nos mantivemos em casa por aqui, mais consumimos vinhos.
Lembrando que apesar da dimensão continental do Brasil, sempre tivemos bons players online entregando porta a porta em todo território nacional (estamos entre os top 10 mercados de e-commerce para bebidas alcoólicas segundo o estudo da IWSR’s Global E-commerce Strategic Study 2020), o que foi determinante para o aumento do consumo.
Exemplos ao redor do mundo
Mesmo países mais maduros como Suécia, Estados Unidos, Alemanha e Inglaterra que tinham a tendência de declínio de consumo pré-pandemia viram a pandemia retomando o aumento do consumo vertiginosamente. Antes, questões como a busca das novas gerações com hábitos de vida mais saudáveis, o aumento de taxas de bebidas para combater o alcoolismo e a mudança no consumo para outras categorias eram primordiais para o declínio do consumo. Hoje, durante e pós-pandemia, o que foi observado é que o vinho entrou em situações de consumo de lazer em casa, algo que antes era só visto como acompanhamento da comida. A indulgência virou algo parte da rotina nesses locais novamente.
Já a França, por exemplo, viu o declínio do consumo acelerar. Os volumes de vinho caíram -3% entre 2018 e 2019, mas a categoria caiu -9% entre 2019 e 2020, segundo dados da IWSR. A cultura e hábitos é algo determinante para explicar o que aconteceu em cada lugar do mundo. Os franceses, por exemplo, são muito pouco digitalizados — ouso dizer que a população é até um tanto quanto misoneísta. Tecnologias, digitalização e compras online não combina com a rotina de um Francês típico. Além disso, o consumo de vinhos está muito relacionado à gastronomia e consequentemente a encontros com pessoas. O on-trade (bares, restaurantes e cafés) ainda é um segmento importante do país. O mesmo foi visto na Espanha, que acaba seguindo uma lógica muito parecida.
Seguindo o declínio do consumo francês, o segmento de vinhos da África do Sul conseguiu viver todas as dificuldades inimagináveis. Em 17 de março de 2020, logo após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 na África do Sul, o presidente Cyril Ramaphosa anunciou situação de emergência. Ele impôs restrições rigorosíssimas, incluindo a proibição de todas as vendas e transporte de álcool, e permitiu a continuação apenas de serviços essenciais, que inicialmente não incluíam a colheita do vinho, que estava praticamente concluída. A organização sem fins lucrativos Vinpro, no entanto, reverteu a decisão com o governo para permitir que a colheita e todos os procedimentos de vinificação fossem concluídos. O objetivo da proibição era liberar leitos hospitalares para pacientes com Covid-19, em vez de casos de traumas causados pelo uso e abuso de álcool, os quais são uma ocorrência comum em hospitais da África do Sul. As exportações, que representam 45% das vendas de vinho do país, também não foram permitidas durante as primeiras cinco semanas do bloqueio.
Antagonizando a triste realidade de alguns países europeus e da África do Sul, no nosso país tropical, batemos todos os recordes em 2020. Nossa média subiu quase 30% indo para um consumo per capita de 2,78 litros. No entanto, segundo a OIV (Organização Internacional da Vinha e do Vinho), a indústria global teve que lidar com uma queda de 2,8% em 2020 na totalidade. Essa é uma queda menor do que se poderia esperar em meados do ano (logo após a primeira onda de infecções), quando o consumo caiu quase 6%. Essa queda anual de consumo entre 2019 e 2020 é a mesma observada entre 2008 e 2009 (grande crise financeira no mundo), que teve recuperação em poucos anos. Pau Roca, diretor-geral da OIV, disse nessa época que a organização acreditava que paralelos poderiam ser traçados, mas continuava bastante hesitante em suas previsões.
Se tem algo que a pandemia da Covid-19 nos ensinou é que previsões são realmente feitas para não acontecer. Nunca se observou tanta incerteza no mercado e tanto receio em afirmar algo. Dados atuais da Ideal Consultoria do Brasil mostra que não só já estamos bem abaixo do volume de importações da época do pico da pandemia como estamos abaixo dos números de 2019.
“Pela primeira vez desde a alta no mercado de vinhos registrada no início da pandemia, o volume entre a soma da comercialização das vinícolas brasileiras com a importação de vinhos ficou abaixo do total registrado no mesmo mês de 2019. Isso aconteceu em outubro, quando este volume ficou 15% menor do que o registrado no mesmo mês de 2019. O volume total comercializado neste mês em 2022 chegou a 40,6 milhões de litros, o que é 20% abaixo do registrado no mesmo período de 2021 e 23% menor do que em outubro de 2020. Este volume acende um alerta no setor” — comenta Felipe Galtaroça — CEO da Ideal Consulting.
Temos uma conclusão?
Se você corajoso chegou até aqui nesse texto, já deu para entender que a pandemia não foi lá aquelas maravilhas toda para o segmento inteiro do vinho como alguns desavisados tendem achar. Não podemos esquecer dos problemas de abastecimento de toda a cadeia, fazendo com que os insumos não só aumentassem desarrazoadamente como também ficassem escassos no mundo todo. Batalhas por garrafas de vinhos, cápsulas, rolhas e contêineres virou a rotina do produtor de vinho e consequentemente aumentos sucessivos de preços.
Já poderia encerrar o muro das lamentações, mas temos uma guerra na Europa que resultou em uma das maiores crises energéticas da atualidade no continente, fazendo com que o custo de produção e distribuição aumente. Recessão americana aguardada — só falta saber o tamanho dela e, recentemente, mais restrições na China pela Covid-19. A única certeza que temos em todas as incertezas é que o segmento do vinho pode estar sofrendo bastante desde o início da pandemia, mas há milênios encontra formas de se reinventar e sair cada vez mais forte dessas adversidades. Aprendemos com os ciclos da videira essa lição. Afinal, não é em solo fértil que se faz bons vinhos e na história não são em tempos mansos que grandes players vão aparecer.