Quando visitar o vinhedo? A vinha e as estações do ano
[Aviso de gatilho: este é um texto sobre botânica]
Faltam dois dias para o novo ano e acabamos de passar pelo solstício. Quem está no hemisfério sul teve o dia mais longo do ano, e quem está no norte, como eu, já não vê muitas horas seguidas de sol há algum tempo. Essa época do ano me faz ter muita inveja de quem está agonizando no verão escaldante tropical refletir sobre as benesses e os martírios de ter estações do ano bem marcadas como são as das cidades europeias.
Sendo criatura de São Paulo, até muito tarde achava que as estações do ano eram um mito. Uma grande conspiração da indústria cultural pra nos entorpecer com a crença de que existe um mundo mais belo e em equilíbrio do que o que se vê por entre os arranha-céus. “Pólen? Isso ficou no século 18 junto com os céus limpos e os rios prístinos”. Eram três os principais motivos do meu ceticismo desinformado: 1 – pouca atenção às aulas de biologia na escola; 2 – a tropicalidade do único clima que eu conhecia; 3 – a poluição da cidade.
Cresci, vi mundo, me informei e cheguei à banalíssima, porém espetacular revelação de que afinal sim, o pólen existe. Ele existe, as plantas assim se reproduzem e, inclusive, há quem se debulhe em rinites alérgicas quando as temperaturas sobem depois do inverno e ele começa a se espalhar pelo ar como numa festa de algodão doce em suspensão e espirros.
Foi uma grande satisfação. A minha primeira vivência de uma primavera e de um outono full power, numa latitude subtropical, coincidiu com oportunidades de revisitar conceitos como “caducifólias” e “perenifólias” e de entender que muitas das plantas que eu cresci vendo nos trópicos são adaptadas a temperaturas relativamente amenas o ano todo. E por isso, pela consistência da exposição solar ao longo do ano, pela abundância de água e pela fertilidade dos solos, não precisam deitar fora suas folhas. Não precisam aderir aos outonos de cores outonais da televisão. Podem ser verdes e brilhantes 12 meses seguidos, como fazem os filodendros que prosperam felizes na Mata Atlântica e nos vasos de apartamento, esses dois importantes biomas da vegetação brasileira.
Mas as caducifólias, ou decíduas, assim como o pólen, afinal também existem. Elas ficam peladinhas a cada inverno porque assim ditam a sua biologia e o clima ao redor. Um exemplo? A vinha. Salvo exceções particulares, como no Nordeste e no Sudeste do Brasil, a planta que nos oferece uvas para o vinho segue bastante à risca os ciclos das estações, e é bem interessante acompanhá-la em suas diferentes fases.
Aqui entra a parte enoturística desta coluna: para quem estiver pensando em visitar uma região vitivinícola, tiver particular interesse em observar as vinhas e estiver em dúvida em relação ao melhor timing, deixo aqui um resumo do comportamento desta planta ao longo do ano. Nerds de plantão terão mais tesão em acompanhar a poda do que a vindima, e poetas deste mundo verão tanta beleza no chorar da seiva quanto no despontar da flor.
I – Repouso vegetativo – S: julho a setembro | N: dezembro a fevereiro
Com a diminuição da incidência de luz, as folhas, cuja principal função é a fotossíntese, já não são mais muito úteis para a planta. Elas caem, e a vinha diminui drasticamente suas atividades metabólicas, entrando em um estado similar ao de hibernação.
II – Choro – S: agosto a outubro | N: fevereiro a março
Quando as temperaturas voltam a aumentar, a vinha reativa a absorção e circulação de líquidos, que até então estavam concentrados e protegidos nas raízes. Devido à poda que acontece no inverno, a seiva vaza pelos cortes, sinalizando o início do ciclo vegetativo.
III – Abrolhamento – S: setembro a novembro | N: março a abril
Os acúmulos de nutrientes que ocorrem em algumas partes do ramo incham e conseguem romper as escamas, virando gomos e dando início à brotação ou abrolhamento, de onde nascem as folhas.
IV – Folhas – S: outubro a dezembro | N: abril a maio
As folhas começam a tomar forma e dão origem a novos ramos, de onde surgem novas folhas e, eventualmente, as inflorescências.
V – Floração – S: novembro a janeiro | N: maio a junho
Aqui a planta já está em intensa atividade, transformando luz do sol em açúcar e inaugurando inflorescências. As flores aparecem e estão prontas para a fertilização quando se desenvolvem os seus órgãos masculinos e femininos.
VI – Frutificação – S: dezembro a janeiro | N: junho a julho
Se correu tudo bem com a polinização e a fecundação, as flores se transformam em frutos, que no início têm apenas água, clorofila e ácidos e são muito pequenos, verdes, opacos e compactos. Não à toa chamam-lhes nessa altura “bagos de ervilha”.
VII – Pintor – fevereiro a março | julho a agosto
Nesta fase há trocas e reações químicas acontecendo dentro das uvas em grande intensidade e euforia. Talvez a mais marcante delas seja a mudança de cor dos bagos, que passam a ficar roxos no caso das tintas e dourados no caso das brancas.
VIII – Maturação – S: março a abril | N: agosto a setembro
O aumento intenso na incidência solar e nas temperaturas permite à vinha produzir ainda mais açúcar e sintetizar compostos fenólicos, que são os taninos, os aromas e a cor. Seu grande objetivo com isso é atrair espécies disseminadoras de suas sementes, como pássaros e insetos. Nós, humanos, somos prova de seu êxito.
É bem difícil lembrar disso em pleno inverno, depois de cinco semanas de chuva seguida, mas cada estação tem suas virtudes e seu papel na manutenção do equilíbrio do todo. Agora é decidir qual delas, e qual fase do ciclo anual da videira, parece mais interessante para ser observada de perto. Bom verão pra quem é de verão!