O Lado Invisível do Terroir, parte I: Microbiomas, a essência oculta dos vinhos
No universo do vinho a atenção geralmente se concentra nos seus elementos tangíveis: solo, clima, vinhas e técnicas de vinificação. No entanto, há um aspecto menos visível, mas crucialmente influente: o mundo dos microrganismos (ou micróbios). Os microrganismos formam microbiomas, que são compostos por criaturas muito bem conhecidas por todos vocês: leveduras, fungos, bactérias, vírus, dentre outros.
Neste mês e no próximo, nossa coluna tentará dar um apanhado geral na intrigante relação entre microbiomas e terroir, guiada pelos estudos pioneiros de Matthew Goddard, da Universidade de Lincoln (Reino Unido), e de Ignacio Belder, da Universidade Complutense de Madrid. Inclusive, Ignacio foi um dos painelistas do Simpósio Master Of Wine que aconteceu ano passado na Alemanha – e foi a fonte inspiradora para os textos dos próximos meses.
Começamos com Goddard, especialista em Biologia de Populações e Evolutiva, que desvenda como os microbiomas – especialmente leveduras – moldam o aroma e sabor dos vinhos através da fermentação espontânea. Por outro lado, Belder investiga o impacto genético e fisiológico dos microbiomas nos vinhedos, uma análise que promete aprofundar nosso entendimento do terroir.
Como já discutimos em colunas anteriores, a influência do terroir na qualidade e estilo do vinho é um tema amplamente debatido. Porém, agora está se descobrindo o papel relevante dos microbiomas também no processo de vinificação. É um assunto novo, que trará novidades para a discussão do que realmente é terroir – e por que temos tantas diferenças mundo afora.
Microbiomas: importantes porém subestimados
A compreensão da importância dos microbiomas no mundo do vinho é uma revolução silenciosa, mas profunda, na enologia. Tradicionalmente, ao pensarmos sobre o que faz um vinho ser especial, nossa atenção se volta para os aspectos tangíveis, como o tipo de uva, o solo, o clima e as técnicas de vinificação. No entanto, conforme apontado por Matthew Goddard, esse universo invisível dos micróbios é tremendamente influente para o caráter e a complexidade do vinho.
Goddard realça uma verdade surpreendente: enquanto os enólogos são responsáveis por produzir o vinho, são os microbiomas que realizam o trabalho árduo. A fermentação, que transforma o mosto de uva em vinho, não é apenas um processo químico simples responsável por converter o açúcar da uva em álcool. Impulsionada por uma diversidade imensa de leveduras e bactérias que interagem de formas complexas, ainda não muito bem compreendidas, ela desbloqueia a geração de uma vasta gama de aromas e sabores através de seus processos metabólicos e fermentativos.
Curiosamente, a maioria dos aromas frutados percebidos nos vinhos não é originária das uvas em si, mas sim de subprodutos do metabolismo das leveduras durante a fermentação. Este fato desafia a noção comum de que os sabores do vinho são predominantemente derivados das uvas. O que complicou muito essa compreensão foi a parte ruim desses processos, pois há leveduras que produzem sabores e aromas indesejados, os famosos off-flavours, ou defeitos. Porém, estudos como os de Goddard estão possibilitando isolar e entender melhor quais seriam esses organismos específicos, de modo que possamos focar somente naqueles que produzem a complexidade que tanto desejamos em nosso vinho. E isso explicaremos a seguir.
Microbioma e Terroir: estaria aqui finalmente o santo graal da replicação do terroir mundo afora?
A relação entre microbioma e terroir é uma das áreas mais intrigantes e inovadoras na ciência do vinho. Essa compreensão desafia a visão tradicional de terroir, que costuma enfatizar principalmente o solo (geologia) e o clima. Sabemos que a geologia é uma influência indireta, principalmente por questões relacionadas à capacidade de retenção e drenagem de água. Mas e o microbioma?
Goddard destaca que cada vinha (ou vinhedo único, um single vineyard) possui uma “assinatura microbiológica” distinta. Essa assinatura é formada pela combinação única de leveduras, bactérias e outros microrganismos presentes em determinado local. Surpreendentemente, estas assinaturas são tão específicas que podem variar significativamente mesmo entre vinhas vizinhas. Essa descoberta corrobora a ideia de que, além das condições climáticas e de solo, os microrganismos locais contribuem de maneira significativa para as características sensoriais do vinho. Contudo, ele ainda não foi capaz de estabelecer qual a relação e interação entre os micróbios presentes no subsolo (raízes), na superfície das folhas e das bagas (pruína), e no conteúdo interno da própria planta e fruta. Não se preocupe, voltaremos a este tema na coluna do mês que vem.
No vinhedo, os micróbios tornam os solos férteis e fornecem nutrientes para as videiras, de forma a participar de seu crescimento. Patógenos como fungos podem prejudicar as uvas (por exemplo, com podridão cinzenta), mas alguns micróbios podem promover o crescimento dos bagos e melhorar a qualidade da fruta. Eles também podem influenciar a abundância de moléculas precursoras que se tornam compostos ativos de sabor no vinho.
Na cantina, ou seja, na área de produção da vinícola, são os micróbios que impulsionam a conversão do mosto em vinho e, como já dissemos, eles participam da formação de aromas frutados, que são, em sua maioria, subprodutos do metabolismo das leveduras durante a fermentação. Alguns produtores fazem uso de enxofre para matar leveduras indígenas e seguem posteriormente com a inoculação de leveduras comerciais, para ter mais controle sobre o tipo de aromas que serão produzidos. Mesmo assim, leveduras naturais ainda estarão presentes, produzindo metabólitos.
Já outros produtores preferem fermentações espontâneas, que proporcionam maior profundidade e complexidade. Estas fermentações contêm muitas estirpes de leveduras, cada uma produzindo perfis de aroma diferentes. Além de gerarem a sua própria gama de compostos aromáticos, elas interagem entre si, resultando em perfis de aroma distintos. Um exemplo icônico é a Fruitsen, uma levedura não-saccharomyces encontrada na Nova Zelândia. Ela aumenta os níveis de tióis (grupo de compostos voláteis que geram aromas de maracujá, por exemplo) em vinhos de Sauvignon Blanc e age em parceria com outros tipos de levedura de forma a adicionar peso ao paladar.
A pesquisa em questão, portanto, abre possibilidades para o desenvolvimento de novas técnicas de vinificação que possam aproveitar o potencial dos microbiomas locais. Por exemplo, a seleção de estirpes de leveduras nativas para a fermentação pode se tornar uma prática comum, visando capturar a essência microbiana de um terroir específico.
Outra curiosidade interessante na investigação é a ideia de que as vinhas, como ecossistemas vivos, abrigam comunidades microbianas que estão em constante interação com o ambiente e os manejos agrícolas utilizados no local. Isso sugere que a viticultura sustentável, que respeita a biodiversidade microbiana, pode não apenas ser benéfica para o meio ambiente, mas também essencial para preservar a complexidade dos microbiomas e a identidade única do vinho de uma região. Mas até onde isso é totalmente verdade?
O manejo teria influencia nos microbiomas? É vantagem ser biodinâmico ou orgânico em relação ao convencional?
Diante das reflexões acima, a pesquisa de Matthew Goddard aborda um tópico crucial na viticultura: as práticas de manejo da vinha entre os possíveis fatores que afetam os microbiomas locais e, por sua vez, a expressão do terroir no vinho. Levará um tempo para termos clareza a respeito do tema, mas já temos pistas valiosas.
Surpreendentemente, seus estudos revelam que, enquanto o manejo convencional com uso de pesticidas e fungicidas pode não devastar completamente a biodiversidade dos microbiomas presentes no solo, há um efeito mais marcante sobre as comunidades fúngicas presentes nas partes aéreas das plantas, incluindo as uvas. Isso sugere que sim, as práticas agrícolas influenciam a composição microbiana das vinhas e, consequentemente, podem alterar as características do vinho. Conclusão: o terroir também está em como se maneja os vinhedos.
Não surpreendentemente, a pesquisa aponta para a relevância das práticas sustentáveis na viticultura. De acordo com Goddard, o manejo orgânico e biodinâmico, que minimiza o uso de insumos sintéticos, pode ajudar a preservar ou até mesmo enriquecer a biodiversidade microbiana nas vinhas. Uma curiosidade que surge deste estudo é a potencial “pegada ecológica” que as práticas na vinha deixam nos microbiomas. Assim como uma vinha pode ter uma assinatura microbiológica única, os métodos humanos podem criar “assinaturas de intervenção”, moldando a composição e diversidade microbiana de maneira específica e duradoura.
No mais, a pesquisa abre portas para o desenvolvimento de estratégias de manejo que respeitam e promovem a diversidade microbiana. Por exemplo, a aplicação de tratamentos que visam especificamente patógenos, sem perturbar os micro-organismos benéficos, pode ser um caminho a ser explorado.
E a geologia? E as rochas? Onde entram na equação microbiana do terroir?
Um dos grandes fatores intrigantes nas discussões sobre o vinho e seu terroir é o papel da geologia. Especialistas e sommeliers focam (às vezes até em demasia) nessa influência. Quem nunca leu uma ficha técnica de um vinho enfatizando isso?
Quando questionado se a geologia poderia interferir no microbioma de uma vinha, Goddard explica que cada rocha e tipo de solo tem o seu pH próprio, e isso afeta diretamente as populações microbianas presentes em um vinhedo. Esta interação é crucial, pois tem um impacto significativo na composição e saúde do solo, refletindo na qualidade das uvas.
No entanto, o pesquisador ressalta que a ligação entre as características geológicas do Terroir, a química dos precursores de aromas e sabores encontrada na fruta e, por extensão, a química do vinho, é extremamente sutil, expressando ceticismo sobre a possibilidade de estabelecer conexões definitivas e diretas entre esses elementos. Segundo ele, são as moléculas orgânicas biológicas que têm o papel principal na definição das características da fruta e do vinho.
O Futuro da Viticultura está no Microbioma
Enquanto o clima é frequentemente considerado o fator mais crítico no terroir, agora fica claro que não se pode ignorar a contribuição microbiana. Goddard afirma que até 10% das variações na química do vinho podem ser atribuídas ao microbioma. Essa é uma fatia considerável, especialmente levando em conta que a influência microbiana foi, até recentemente, quase totalmente ignorada.
Longe de serem meros coadjuvantes, portanto, os micróbios são protagonistas na criação da identidade única de cada vinho. E assim se desafia as noções tradicionais de terroir. Talvez aqui esteja a fronteira final para finalmente entendermos por que a Borgonha é a Borgonha, e por que outras regiões não são. Mas mapear e analisar esses seres invisíveis não será suficiente: ainda há as complexas interações e colaborações mútuas entre esses sistemas. Há pesquisadores trabalhando para desvendar essa complexidade, por isso podemos contar com avanços significativos para os próximos cinco ou dez anos. E desde já sabemos: até no vinho o essencial é invisível aos olhos.
Mês que vem traremos os estudos do professor Ignacio Belder, da Universidade Complutense de Madrid. E, enquanto eles continuam a explorar e compreender este mundo oculto, nós seguimos aqui com nossa tacinha de vinho, festejando essa diversidade quase infinita.
Até mês que vem!