5 Poemas Em Que o Vinho Brilha e Breves Interpretações de Cada Um
Vou passar reto pelos clichês que louvam a sinergia entre vinho e poesia. Também não vou sugerir rótulos específicos que “harmonizam” com a densidade das imagens evocadas em um poema ou a jovialidade da linguagem em outro. O que vou fazer é trazer reflexões aleatórias e singelas sobre textos de poetas famosas e famosos que pararam um minuto pra pensar sobre o vinho e tiveram algo bonito a dizer a respeito.
Seguindo uma linha temporal pelos dois últimos séculos da literatura ocidental, passeamos pelo drama escapista de um francês, o existencialismo de um místico com múltiplas personalidades, o lirismo de um socialista latinoamericano, a consciência política da primeira mulher a ter recebido o Prêmio Camões e a simplicidade reflexiva de uma mineira (ainda bem) ainda viva.
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Charles Baudelaire (França, 1821 – 1867)
A alma do vinho (original completo e tradução aqui)
O vinho dos amantes (original completo e tradução aqui)
O pai do Modernismo, atormentado nos meados do século 19 com o aumento das grandes cidades e a diminuição do espaço individual, já tinha fama de ter a saúde mental comprometida quando publicou sua obra-prima, uma coletânea de poemas controversos com o simpático título “As flores do mal”. Ao lado de temas como sexo, morte, lesbianismo e amor profano, Baudelaire nos traz… o vinho.
Resultado: o livro foi censurado, tamanha a controvérsia que as páginas sacrílegas geraram, mas hoje temos acesso à obra completa desse bad boy de laço no pescoço. Dois exemplos:
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Assim a alma do vinho cantava nas garrafas:
‘Homem desamparado, a ti ofereço, de verdade,
Desta prisão de vidro que agora me abafa,
Um canto de luz e de fraternidade!’
[…]
[tradução Christian Guernes]
Quem lembra das figuras de linguagem vai sacar logo no primeiro verso a personificação – quando se atribui características humanas a objetos inanimados. É claro que aqui somos todos esclarecidos e sabemos que, de inanimado, o vinho não tem nada. Mas se cair na prova de português, já sabe.
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Hoje é esplêndido o espaço!
Sem freios, sem esporas, sem laço
Partamos como a cavalo sobre o vinho
Rumo a um céu cheio de fadas e divino!
[…]
[tradução Lana Ruff]
Tanto neste poema, O vinho dos amantes, como no anterior, a bebida é cantada como o veículo para um lugar de musicalidade, convívio e, sim, fadas. Desesperado pelos escapes da realidade, Baudelaire nos diz aqui que, mesmo quando aprisionado por nós numa garrafa de vidro, o vinho tem a aura capaz de compor cânticos de luz e nos encantar com sua voz poética e etérea.
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Fernando Pessoa (Portugal, 1888 – 1935)
Sem título
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Não fiz nada, bem sei, nem o farei,
Mas de não fazer nada isto tirei,
Que fazer tudo e nada é tudo o mesmo,
Quem sou é o espectro do que não serei.
Vivemos aos encontros do abandono
Sem verdade, sem dúvida nem dono.
Boa é a vida, mas melhor é o vinho.
O amor é bom, mas é melhor o sono.
–
Pessoa era um filósofo, além de um místico de carteirinha. Neste pequeno poema ele coloca em suspensão conceitos tão básicos quanto a diferença entre tudo e nada, entre ser e não ser. Esse tom existencialista aparece em muitos dos seus textos, principalmente aqueles assinados com seu ortônimo (seu nome original em vez dos seus heterônimos).
Aqui o vinho aparece como um elemento terreno, de simplificação. No limite, ele traz até a ideia de anestesiamento, especialmente quando vemos o verso a seguir. Ou seja, a vida e o amor são coisas grandes, essas perguntas todas são enormes, mas melhor mesmo são os elementos mundanos que nos fazem escapar delas: os que nos dão prazer e descanso.
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Pablo Neruda (Chile, 1904 – 1973)
Ode ao vinho
Original completo com tradução aqui
[…]
O vinho
move a primavera,
cresce como uma planta a alegria,
caem muros,
penhascos,
fecham-se os abismos,
nasce o canto.
[…]
Mas não só amor,
beijo ardente
ou coração queimado
és, vinho de vida,
mas também
a amizade dos seres, transparência,
coro de disciplina,
abundância de flores.
[…]
Também chove a personificação do vinho aqui, além de outras figuras de linguagem (alô metonímia, sinestesia, hipérbato, assíndeto, e parei de jogar termos obscuros). Como o título do poema já diz a que vem, aqui temos esse lugar da ode, ou seja, do elogio, do louvor. Neruda era ótimo isso. Ele também escreveu uma Ode à Cebola tão linda que, mais ainda que a cebola, dá vontade de chorar.
[…]
Que o bebam,
que lembrem em cada
gota de ouro
ou taça de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou o outono
até encher de vinho as ânforas
e aprenda o homem obscuro
na cerimônia de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.
[tradução Cleto de Assis]
Porque o vinho é resultado do trabalho do outono, das estações todas, da natureza toda, ele é para nós um professor. Ele é um canal de conexão com os cursos naturais e os elementos. O poeta chileno faz um convite para que o homem então, como aprendiz, lembre da terra. Iluminados pelo conhecimento sensorial dos processos que acontecem até que o vinho seja vinho, poderemos “propagar o cântico do fruto” e difundir a sabedoria da natureza.
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Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal, 1919 – 2004)
Tu sentado à tua mesa
Original completo aqui
Sophia de Mello tem várias facetas, entre elas a nostálgica, a cristã, a erudita e a apaixonada pelo mar. Neste poema ela encarna a sua voz justiceira para lembrar que, quando sentamos à mesa pra ser feliz, há mãos, corcundas e cabeças ao sol por trás de tudo.
[…]
Para além daquela serra
P’ra que tenhas vinho e pão
Abrindo o corpo da terra
Dobra o corpo o teu irmão
Sua mão concha do cacho
sua mão concha do grão
Em cada gesto que faz
Põe a vida em comunhão.
Não só no tema, mas também na métrica (a organização dos versos de acordo com o número de sílabas) ela faz referência ao Humanismo. Esse movimento literário e artístico aconteceu lá pelo século 15 e, além de outros temas, falava do equilíbrio entre razão e emoção. Ou seja, o que a poeta diz aqui é: “Desfruta dos prazeres que a mesa traz, que o vinho proporciona, que tudo isso é sagrado. Mas com consciência do que está por trás”.
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Ana Martins Marques (1977 -)
Relógio
Original completo aqui
[…]
se lavamos as roupas brancas:
é dia
as roupas escuras:
é noite
se partes com a faca uma laranja
em duas:
dia
se abres com os dedos um figo
maduro:
noite
se derramamos água:
dia
se entornamos vinho:
noite
[…]
É preciso um esforço pra não gostar de Ana Martins Marques, mas mesmo quem consegue esse feito não pode negar que ela é uma das poetas vivas mais importantes, mais originais no Brasil. No poema Relógio ela pergunta “De que nos serviria / um relógio?” se é tão evidente a diferença entre os afazeres domésticos e os acontecimentos entre o dia e a noite.
A simplicidade aqui é o grande trunfo, como costuma acontecer nos poemas dela. Sem a necessidade de elaborações complexas, somos inundados pela imagem de uma taça na horizontal,
um tapete tingido de um vermelho profundo e também uma risada, porque o vinho põe em tudo uma manta de leveza – inclusive nas catástrofes.
Também convém não deixar escapar uma interpretação do verso que fala de um figo maduro sendo aberto com os dedos à noite. Ela pode não estar falando efetivamente de um figo, mas de outra fruta doce afeita à atividade manual noturna.
[…]
se desabotoas lentamente
tua camisa branca:
dia
se nos despimos com ânsia
criando em torno de nós um ardente círculo de panos:
noite
[…]
Seja sob o prisma atormentado de uma Paris caótica do século 19 ou sob a lente sensível e desacelerada de uma escritora brasileira, resta pouca dúvida de que o vinho pertence ao universo da luxúria, do prazer e da noite. E das frutas maduras que se abrem com os dedos.