In vino veritas

In Vino Veritas

​Caros leitores e leitoras, inicio este texto num molde que remete a uma comunicação já não mais usual entre colunistas e seus leitores, para entrar no clima do assunto que trago nas próximas linhas. Venho refletindo muito a respeito de uma imensidade de questões, e o vinho seguramente está inserido em algumas delas, visto que já o vejo como parte integrante da minha vida e não apenas da rotina profissional, mas também pessoal. Nossa coluna prevê um conteúdo quase prático de orientação para que se minimize, por assim dizer, os possíveis desencontros das harmonizações mal planejadas, já que sempre ocasionam, no mínimo, uma sensação desagradável.

​Pois bem. Para hoje, vamos caminhar por uma estrada um pouco diferente, um tanto mais teórica e que nos incentive possíveis reflexões. E já que o meu mundo gira em torno da gastronomia, que está inserida na hospitalidade, nos manteremos neste recorte. ​Afirmar que comida é afeto, memória, história e que, para além destas questões já tão relevantes, tem ainda o poder da sociabilidade na promoção e preservação de vínculos, não é novidade alguma. No entanto, recentemente me peguei tentando compreender qual foi o momento em que o vinho deixou de carregar as simbologias que nele cabem, como o alimento que é, e passou a ser limitado às características organolépticas que carrega em garrafa, produção, questões comerciais e de marketing e, no máximo, às histórias de famílias produtoras de vinhos contadas para estimular de alguma forma a venda.

​Existe um símbolo africano chamado Sankofa, representado por um pássaro que voa para a frente e tem a cabeça voltada para trás, em que carrega no bico um ovo, que representa o futuro. Com base nessa simbologia, penso que com frequência precisamos revisitar o passado para vislumbrarmos um futuro melhor com a sabedoria adquirida. Mas deixemos pra já isso aqui de lado. Pode não parecer agora, mas garanto que vai fazer sentido depois.

E voltemos ao vinho, ainda que lhes garanta que não estamos fugindo da reflexão. Será que temos perdido a essência do vinho como alimento? Será que temos sofisticado tanto o beber vinho e os encontros entre apreciadores, que temos deixado de lado a comunhão por trás desta bebida ancestral? Pode ser que exista também um “será que eu estou me preocupando demais?” Ainda assim, se a minha escrita (troca) aqui com vocês parte da construção que tive como profissional e das minhas vivências, digo: ultimamente tenho tido a sensação de que, quando tomo vinho junto, é quase sempre em situações em que há relações de trabalho, apenas. E que, por prazer, tomar vinho tem se tornado um hábito solitário. Isso me leva a outro questionamento: será essa uma condição da vida moderna?

A comunhão em torno da mesa

​Dia desses me veio em mente a clássica frase “In vino veritas” – “No vinho, a verdade”. Essa expressão latina sugere que o vinho tem o poder de revelar a verdade interior das pessoas, tornando-as mais sinceras e abertas.

​A origem dessa frase remonta à Antiga Roma, onde se acreditava que os banquetes e encontros sociais regados a vinho propiciavam um ambiente acolhedor para conversas abertas e desinibidas. Sob a influência do vinho, as pessoas tendiam a revelar seus verdadeiros pensamentos e sentimentos, rompendo as barreiras sociais e se mostrando mais vulneráveis. Aqui o ponto certamente não trata de vulnerabilidade, mas da possível retomada do prazer em socializar, como fazíamos antes das redes sociais na internet, quem sabe. Mais uma coisa a se pensar…

​Ao associar essa frase à hospitalidade com foco em gastronomia, podemos explorar como o vinho desempenha um papel central nas experiências culinárias que transcendem o simples ato de beber. Na essência da hospitalidade, recepcionar os convidados com uma refeição bem preparada e acompanhada de vinho cria um ambiente de celebração e conexão, onde as barreiras sociais tendem a se dissipar. ​Mas afinal, especificamente falando, que essência é essa relacionada ao vinho e hospitalidade da qual tenho sentido que temos nos distanciado?

 

​O ato de compartilhar uma refeição com vinho, em um ambiente acolhedor, abre espaço para que os convidados se sintam mais à vontade para se expressarem. O vinho, com suas propriedades relaxantes e prazerosas, promove uma atmosfera descontraída e estimula conversas genuínas. É como se cada gole nos levasse além das formalidades, permitindo que nossas verdadeiras identidades se revelem. E assim elas se sobrepõem à atual sensação latente que muitos de nós temos tido, de que com frequência assumimos personagens para nos adaptarmos a situações e/ou a grupos aos quais aspiramos.

Família negra brinde com vinho

A experiência sensorial

 

​Na gastronomia, o vinho enriquece a experiência sensorial da comida. Os diferentes aromas e sabores presentes no vinho complementam e realçam os pratos servidos, criando uma sinfonia de paladares que encanta os sentidos.

Essa combinação cuidadosa entre vinho e comida reforça a hospitalidade, demonstrando aos convidados o cuidado e a atenção dedicados a cada detalhe da experiência culinária.

​Cá entre nós, para aqueles muitos leitores que aqui apreciam comida e vinho e que têm participado de jantares harmonizados, esses dois elementos principais, na maioria das vezes, tendem a se tornar figurantes, quando deveriam ser protagonistas. Já não temos nos permitido o tempo e prazer da apreciação dos elementos contidos em cada garfada seguida de um bom gole do vinho proposto para a harmonização. E quando há o movimento da troca de informações pertinentes ao que foi degustado, parece que as falas são ensaiadas. Eu diria até que é um modo automático que alguns de nós têm assumido: o olhar no rótulo que já te dá a uva e te induz a nem sequer se permitir desafiar-se a decifrar o vinho, já que compreende pela informação básica na garrafa as características genéricas que ela contempla.

 

Ligações culturais e memórias compartilhadas

 

​Em muitas culturas, o vinho tem um papel fundamental em celebrações e momentos especiais. Beber vinho juntos é uma forma de celebrar a vida, compartilhar alegrias e criar memórias inesquecíveis. Quando a hospitalidade se entrelaça com a gastronomia e o vinho, esses momentos se tornam ainda mais significativos, fortalecendo os laços entre os participantes.

​Vinho também é memória. Você ainda tem registrado momentos memoráveis com ele atualmente?

​Agora, para finalizarmos, e minha total admiração a você que chegou até aqui por eu não ter tecido um fio tão fluído quando gostaria no texto de hoje, contemplemos por um último momento o título desta coluna.

​”In vino veritas” nos relembra que a hospitalidade com foco na gastronomia vai além de simplesmente servir alimentos e bebidas. É uma arte que busca criar um ambiente onde as pessoas possam ser autênticas e sinceras, desfrutando de momentos de conexão e prazer em torno da mesa. O vinho desempenha um papel mágico nessa experiência, tornando-a mais rica, sensorial e memorável, com todo o seu aporte ancestral, mitológico, simbólico e até religioso. Através dessa combinação, encontramos a verdadeira essência da hospitalidade: a capacidade de nutrir não apenas os corpos, mas também as almas daqueles que se sentam à mesa. Profundo…

​Em suma, a expressão “In vino veritas” continua a nos fascinar e intrigar até os dias de hoje. Ela nos lembra que o vinho, além de ser uma bebida apreciada por suas características sensoriais, pode ser um catalisador para experiências sociais enriquecedoras e momentos de conexão entre as pessoas. Contudo, é importante lembrar que a verdade genuína reside não apenas no vinho, mas na capacidade de sermos honestos e autênticos em nossas interações e relacionamentos, independentemente de estarmos sob sua influência ou não.

​Será que o texto da coluna de hoje era mesmo apenas sobre o vinho?

 

Até a próxima, meus caros! Saúde! 🍷;-)

Assinatura Vinhos Única Chef Aline Guedes

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Nesse texto o Pablo Fernandes vai nos ajudar a explorar as interações sensoriais entre receptores gustativos e acidez no vinho.