Mineralidade: a palavra proibidona do mundo do vinho.
ou
por que pessoas discutem e implicam com algo que ninguém sabe dizer consensualmente o que é.
Primeiro, um parênteses: sim, atrasou a parte II do texto “Como virar um geek no mundo do vinho” esse mês. Ficou pra setembro que vem, tudo bem?
Para substituí-lo, vamos discutir sobre uma das palavras mais polêmicas do mundo do vinho: MINERALIDADE.
Tem muita gente que adora ela. Tem outros que têm verdadeira ojeriza. E por que isso?
Quem me inspirou a escrever sobre foi meu amigo Dr. Heber Rodrigues, um cientista de percepção brasileiro que hoje vive na Inglaterra especializado em percepção multissensorial com foco em vinhos.
Ele fez um estudo sobre mineralidade e participou recentemente no podcast WineBlast do casal Peter Richards & Susie Barrie, ambos Masters of Wine. E lá ele foi inquirido a falar sobre seus achados de mineralidade (e vamos citar trechos da entrevista).
E você meu caro leitor, o que acha, a mineralidade existe na taça do vinho? E de onde ela vem: é do solo (sendo resultado da rocha) ou é um processo da fermentação? (ou de alguma outra ‘mágica’ do produto do vinho). Convido você a chegar a uma conclusão após esse (longo) texto.
Comecemos com nada mais menos que Jancis Robinson e seu Oxford Companion.
(Tentando) definir a Mineralidade
O termo “Mineralidade”, segundo o Oxford Companion do Vinho de 2015, é um conceito adicionado ao vocabulário do vinho recentemente (ainda neste século XXI), e foi efusivamente abraçado por vinicultores, comerciantes e bloggers de vinhos.
Os seguintes descritores são associados à mineralidade: pedras molhadas, defumado, casca de ostra, principalmente a vinhos como os franceses Sancerre e Chablis.
Porém muitos especialistas em geologia e ciência do solo traçam uma linha clara: não há conexão direta entre o sabor do vinho e os minerais das rochas ou do solo (e isso discutiremos a seguir).
Então, o que realmente é a ‘mineralidade’? Estes pesquisadores sugerem um jogo químico, possivelmente influenciado pela acidez ou pelo pH do vinho (e relacionado ao solo alcalino onde está a vinha). No entanto, numa dança entre ciência e percepção, é desafiador definir se a mineralidade é fruto da terra onde está a vinha ou se é um subproduto da vinificação – ou mais radical ainda, da pessoa que a percebe.
A busca por uma definição clara continua, mas a ‘mineralidade’ permanece uma bela incógnita em nossa taça de vinho por ora. Exploremos mais então.
A teoria do geólogo Alex Maltman
Alex Maltman é um professor de geologia galês que, dentre artigos sobre (contra) mineralidade, publicou o livro Vineyards, Rocks, and Soils: The Wine Lover’s Guide to Geology. Nele Maltman refuta qualquer relação direta entre minerais presentes no solo do vinhedo e os encontrados no líquido do vinho. Ele argumenta que apesar dos vinhos serem descritos como cheios de minerais, suas concentrações medidas são geralmente muito pequenas. Ainda, elementos como potássio, cálcio e magnésio estão presentes porém em quantidades mínimas. Em vinhos comuns, os minerais compõem menos de 0,2% do total.
E ele faz uma comparação com a água mineral: apesar das tentativas de estabelecer limites de detecção sensorial humana para esses minerais na água, no vinho esses valores sugeridos provavelmente seriam ainda mais altos, o que por si só já inviabilizaria qualquer ideia de mineralidade por relação direta. E com um agravante: no vinho, devido à presença de outros sabores, os limites de detecção provavelmente seriam ainda mais elevados e potencialmente mais desagradáveis. E que estudos sobre limites de detecção desses elementos inorgânicos no vinho ainda não foram realizados.
Por fim, uma conclusão de Maltman: “Descrever um vinho como mineral ou possuindo mineralidade não é referência a minerais reais – geológicos ou nutrientes – mas sim alguma dica, alguma associação mental. Uma lembrança pode envolver algum aspecto de materiais geológicos, mas isso não significa que eles estão realmente lá no vinho. Todos os sinais da geologia são de que “seja lá o que for a mineralidade, não é o gosto dos minerais do vinhedo”.
Dito isso, seguimos agora com a análise de Jamie Goode em seu livro The Science of Wine.
Jamie Goode, mineralidade e a ciência do vinho
Jamie Goode, importante figura do mundo do vinho, trata da Mineralidade em seu brilhante livro The Science of Wine. Ele começa pela cientista francesa do solo Lydia Bourguignon, que afirma que a mineralidade nada mais é que a percepção das rochas no solo pelo paladar. Aliás, Lydia e seu marido, Claude, formam uma das consultorias mais respeitadas sobre o papel dos solos de vinhedos. Eles realizam degustações geossensoriais onde se toca e até se prova diferentes rochas para encontrar as mesmas sensações no vinho.
E o que seria mineralidade aplicada ao vinho? É um termo de degustação? E podemos tentar ligar a mineralidade aos produtos químicos presentes no vinho? E significa a mesma coisa quando falamos sobre vinhos minerais?
Para Jamie Goode, essas são perguntas complicadas para responder. Porém, é um termo com significados distintos para cada pessoa e que não há certeza se outros referem-se à mesma coisa quando usam ele. Contudo, é possível afirmar que muitas vezes ele é usado apenas para elogiar um vinho complexo e delicioso, semelhante ao uso do termo “longo” quando faltam descritores mais concretos. Exploremos mais então.
Mineralidade em seu sentido literal
A mineralidade em sua forma literal deixa as coisas interessantes (para irmos contra a tese do professor Maltman). Explicamos: assim como a água mineral possui diferentes íons que alteram o sabor, os vinhos também têm essa variação devido aos íons minerais presentes. Olivier Humbrecht (Master of Wine e produtor de vinhos na Alsácia) e Gerd Stepp (consultor de vinhos) concordam que é possível detectar esses minerais ao degustar um vinho, trazendo uma nuance mais salina ou salgada. Stepp vai ainda mais longe, afirmando que a mineralidade em vinhos pode ser de duas formas: pelo próprio conteúdo mineral e pela geologia ou terroir onde as uvas são cultivadas.
De fato há estudos que reforçam a influência do terroir na mineralidade dos vinhos. Um pesquisador de plantas alemão chamado Andreas Peuke encontrou diferenças na composição da seiva de videiras Riesling conforme o tipo de solo onde estavam plantadas (no experimento, ele cultivou vinhas de Riesling em vasos contendo três tipos diferentes de solos de vinhedos da Francônia). Já o produtor de vinhos da Califórnia Randall Gram experimentou adicionando rochas inteiras (isso mesmo) diretamente em tanques de vinho, notando mudanças no aroma, textura e sabor do vinho, evidenciando a influência mineral.
Assim, Jamie Goode conclui que uma grande quantidade de estudos sugere fortemente uma correlação entre os tipos de solo nos quais as uvas são cultivadas e o perfil final do gosto do vinho produzido delas. Porém, segue a ideia de que mesmo com essas evidências ainda há muito debate por conta da complexidade envolvida.
Mineralidade como produto da vinificação
A descrição “mineral” tornou-se uma expressão corriqueira no universo dos aromas de vinho. No entanto, por trás deste termo, frequentemente reside a presença de compostos sulfurosos voláteis no vinho, conhecidos mais tecnicamente como redução. No extremo de sua manifestação, a redução, causada pelo sulfeto de hidrogênio, exala um odor não muito agradável, lembrando ovos podres ou esgoto – ainda que esse cenário seja raro em vinhos prontos.
Uma ocorrência mais usual no vinho envolve os complexos de sulfetos e mercaptanos (ou tióis), que são gerados, em sua maioria, pelas leveduras no decorrer do processo de fermentação. Quando em concentrações específicas, estes compostos são os responsáveis pelo distintivo aroma mineral. Há quem sugira que aquele sabor característico de pedra em vinhos brancos seja fruto de uma certa medida de redução, e é notório observar que alguns produtores estão dominando essa técnica com o intuito de propositadamente realizar tal efeito em seus vinhos.
Outra teoria intrigante aponta uma relação direta entre o terroir e um estresse nutricional nas leveduras, conduzindo à produção desses compostos sulfurados voláteis.
A preferência científica tende a convergir para essa interpretação, especialmente porque como falamos anteriormente (Maltman) muitos pesquisadores questionam a noção literal de que os minerais presentes no solo possam influenciar diretamente no sabor do vinho. Aliás, vamos puxar um gancho pra essa história de estresse e deficiência nutricional.
Mineralidade como resultado de deficiências específicas de minerais
Mais uma vez recorremos ao renomado estudioso de solos francês Claude Bourguignon. Ele salienta que, em um sistema vivo, todos os compostos que nele se manifestam são oriundos da ação de enzimas. Segundo ele, o que é mais intrigante é que muitas destas enzimas trazem em sua composição micronutrientes/cofatores metálicos, como o magnésio presente na clorofila ou, ainda, o manganês e magnésio que se incorporam em enzimas responsáveis pela formação de moléculas de monoterpeno. E esses micronutrientes cofatores, de suma importância, têm sua origem no solo.
Bourguignon ressalta que ainda nos encontramos totalmente no escuro quando se trata do conhecimento das vias enzimáticas que atuam na síntese dos compostos aromáticos ou, até mesmo, de seus precursores.
Ele postula que a ausência de sabor em frutas cultivadas de forma hidropônica se deve à lacuna de micróbios no solo, levando a uma carência de micronutrientes e, por consequência, a uma falta de aroma, visto que estas enzimas, indispensáveis no processo, demandam os micronutrientes como cofatores.
No entanto, paira uma suspeição para Goode: Bourguignon pode estar correto, mas por vias ligeiramente distintas das iniciais. Talvez, ao contrário da concepção de que grandes terroirs sejam repletos de micronutrientes, alguns deles apresentem deficiências que, embora sutis, são significativas. Estas deficiências poderiam acarretar em uma diminuição da atividade enzimática responsável por gerar compostos específicos ligados ao sabor ou seus precursores. O resultado? Um mosto que, ao carecer de determinados nutrientes, desencadeia uma fermentação que, embora inicialmente aparente ser deficiente, culmina em uma complexidade notável no produto final.
A título de reflexão, vale lembrar que, enquanto plantas dependem incontestavelmente da clorofila para sua sobrevivência, alguns compostos chave no perfil aromático ou seus precursores são metabólitos secundários e não essenciais. Isso sugere que possa existir uma variação nos níveis desses compostos nas uvas.
Contudo, cabe ressaltar que tudo isso ainda está no campo da especulação, necessitando de mais estudos científicos robustos.
Percepção de mineralidade
Conforme falamos no início do texto, mineralidade foi um tema do Podcast WineBlast e que contou com uma entrevista dada pelo cientista de percepção Heber Rodrigues. Vamos às principais declarações dele então.
Após uma década de estudos, o conceito de “mineralidade” em vinhos ainda não é claramente definido, com produtores oferecendo descrições divergentes sobre sua origem e características. Originalmente, vinhos que atualmente são classificados como “minerais” eram chamados de “austeros”, denotando uma ausência de caráter aromático forte. Em anos mais recentes, a terminologia evoluiu, e a “mineralidade” tem sido utilizada tanto para descrever vinhos que não são muito “abertos” em aromas. E cá entre nós, o termo “austero” não é algo que ajude a vender um vinho, não concordam?
Por isso, é possível dizer que o uso do termo mineralidade também é uma estratégia de marketing, sugerindo uma qualidade intrínseca ao vinho de Chablis no caso do estudo de Heber, já que isso influencia diretamente a percepção e compra do consumidor.
Falando em influência, a percepção da mineralidade difere entre profissionais da vinicultura e consumidores leigos. Enquanto os especialistas veem a mineralidade como uma característica positiva, muitos consumidores têm dificuldade em compreender e valorizar essa qualidade, podendo, inclusive, não apreciá-la da mesma forma que os profissionais. Porém, é inegável que a comunicação dos vinicultores e as táticas de marketing podem moldar a percepção dos consumidores, e à medida em que adquirem mais conhecimento, os consumidores desenvolvem um vocabulário mais rico, alterando sua percepção sobre os vinhos (e provavelmente aderindo ao bonde da Mineralidade).
Ainda, foi observado no estudo de Heber que a experiência da mineralidade é multifacetada, podendo ser detectada através do paladar, olfato e até mesmo da visão. Por exemplo, vinhos com uma cor dourada, por exemplo, frequentemente não são associados a uma maior mineralidade (são geralmente associados a algo oxidado). Além disso, as descrições de mineralidade variam amplamente, abrangendo termos como “giz”, “frescor” e “acidez”.
A mineralidade também é comumente associada a “terroir”, especialmente ao tipo de solo de onde as uvas são colhidas, com solos calcários frequentemente creditados por conferirem mais mineralidade que os argilosos. Há também evidências de uma ligação entre compostos sulfurosos voláteis, como metanotiol, e a percepção da mineralidade em vinhos.
Heber conclui que a linguagem usada para descrever vinhos, incluindo termos como “mineralidade”, deve continuar a evoluir e se tornar mais diversificada.
E claro, não podemos deixar de mencionar novamente que é provável que haja uma grande influência mercadológica no uso agregado de termos como “mineralidade” e “terroir” (principalmente quando tentamos associar um ao outro). Assim, ao associar os vinhos a esses termos também é enfatizada sua singularidade, a de um lugar único (o terroir), o que também é uma ferramenta de Marketing.
A fórmula da mineralidade por Sarah Jane Evans MW
Em um texto escrito para a revista Decanter em 2014, (e traduzido pelo Prof. da ABS/SP Arthur de Azevedo) a Master of Wine britânica Sarah Jane Evans propõe algo brilhante para os amantes da mineralidade: uma equação para encontrar mais facilmente vinhos que contenham a proibidona:
“Por enquanto, podemos expressar os mistérios da mineralidade em uma fórmula lúdica: [SS+A+CC] – [E+T] – [O²] = Mineralidade, onde SS são Solos Pedregosos, A é Acidez, CC é Clima Fresco, E + T são os aspectos frutados do vinho em Ésteres e Tióis, e O² é oxigênio. De forma mais breve, procure vinhos provenientes de solos pedregosos e climas frescos, com acidez marcante, que não sejam excessivamente frutados e que não tenham sido expostos ao oxigênio. Se você aprecia esse estilo, esta pode ser uma abreviação útil para encontrá-lo.”
Concluindo
Que bom que você chegou até aqui! Depois de ler tantas ideias e teorias, você chegou a uma conclusão? Eu sim: pode até ser que a mineralidade não seja uma relação direta de causa e efeito entre minerais do solo e minerais no líquido. Mas é inegável que exista algo que influencia o resultado de um vinho de uma uva Chardonnay em um Chablis Grand Cru contra outro da mesma uva e de alta gama de uma região do novo mundo.
Enquanto não se comprova isso, embarco na fórmula empírica da MW Sarah Jane Evans, aguardando ansiosamente por mais descobertas científicas que deem suporte ao efeito do terroir na mineralidade. E até mês que vem!