O clímax do vinho: como é trabalhar numa vinícola durante a vindima
Em setembro, no hemisfério sul, as vinhas em geral estão começando a dar sinais de atividade após o repouso invernal. No hemisfério norte a situação é outra. Já passados os meses de verão, a videira já viveu o seu ciclo vegetativo e atinge agora o seu ponto culminante: a plena maturação do fruto.
Já falamos sobre o ciclo da videira no passado, por isso sabemos que tudo, do despencar das folhas no outono à floração na primavera, acontece de forma que a planta faça o melhor uso possível dos recursos que tira do ambiente – luz, calor, nutrientes e água – para um objetivo apenas: dar frutos. Os frutos, com sua aparência e aromas profundamente sedutores, serão capazes de atrair espécies disseminadoras de suas sementes, como insetos, aves, roedores… e humanos.
De todos os animais na terra, nós somos os mais poderosos aliados de algumas espécies de plantas, algo que fica claro quando observamos a superfície global de cultivo de cereais como arroz, milho e trigo. Passaremos pela tangente do tema problemático da monocultura, pois o que nos interessa aqui é a perspectiva de plantas como a videira, que há mais de 8000 anos vem nos seduzindo através de sua fruta e nos induzindo a propagar mais e mais a sua cultura.
Quem está, em época de vindima, numa região vitivinícola e passeia pelas estradas locais vê diariamente caminhões carregando caixas cheias de uva do vinhedo à adega ou caixas vazias da adega ao vinhedo. É o trabalho de um ano inteiro para isso. Tudo culmina aqui, na colheita. A videira trabalhou, o viticultor trabalhou, o pessoal do marketing e da distribuição trabalhou. Agora é hora de pegar na fruta e transformá-la em bom vinho.
Fazer vinho, agora ou já
Não é à toa que nessa época do ano (fevereiro a abril no hemisfério sul e agosto a outubro no hemisfério norte) os produtores de vinho contratam pessoas para ajudar nas múltiplas tarefas que decorrem do evento que é a chegada da fruta à vinícola. Uma vez madura, ela não espera. São precisos braços, mãos, olhos e cérebros extra para encaminhá-la adequadamente à fermentação, à prensa e ao afinamento do líquido.
Essa experiência, de tirar a uva da árvore, pegá-la no colo e acompanhá-la por cada etapa do processo de vinificação, é algo que interessa cada vez mais pessoas, e vinícolas ao redor do mundo, atentas à tendência, já começam a oferecer o trabalho da vindima como experiência enoturística. Para quem trabalha as horas nuas e cruas de uma temporada de colheita, no entanto, isso pouco tem a ver com entretenimento. A carga de trabalho pode ultrapassar as 90 horas semanais e, dependendo do produtor, não é raro correrem semanas sem que haja um dia sequer de folga.
Quem tiver interesse em passar por algo assim, mas sente que pode ficar satisfeito com um ou dois dias de trabalho, pode buscar uma vinícola que ofereça experiências como “ser winemaker por um dia”, “colher uvas direto do vinhedo” ou “pisar uvas num lagar tradicional”.
No entanto, se a ideia é realmente mergulhar no processo de produção, então o compromisso aumenta de tamanho, e neste caso a relação monetária se inverte. Mas o que acontece, efetivamente, numa vinícola em temporada de vindima?
Chamamos “vindima” a colheita específica da uva e também o período que a compreende, mas “fazer uma vindima” significa muito mais do que coletar os cachos. Na verdade, se o propósito for acompanhar o processo de vinificação, então o grosso do trabalho será feito na adega. Já há alguns anos venho ocupando meus outonos com isso e, na maior parte das experiências que tive, menos de 20% do tempo foi passado entre as vinhas, sendo que muito disso foi para controle de maturação, antes mesmo de ser dada a largada, ou para outros trabalhos de viticultura.
Entre as principais tarefas desempenhadas na vinícola, portanto, estão:
Limpeza
“Wine is a water business”. Ouvi isso na minha primeira vindima, e ao fim do dia 1 entendi que realmente o negócio do vinho na verdade se trata de água. Hoje, são gastos em média 600L de água para produzir uma garrafa de vinho*. O dado é desesperador, mas ainda assim não impressiona tanto quanto a experiência de ver pela primeira vez como se higieniza uma bomba de massas, uma mangueira, um tanque de fermentação, um balde, um desengaçador, uma mesa de seleção e assim por diante. Ou o chão. Qualquer superfície não higienizada pode ser um chamariz para insetos vetores de bactérias prejudiciais para o vinho, por isso a maior parte dos produtores usa água em abundância para ter certeza de que todo o equipamento e as infraestruturas de trabalho têm condições higiênicas propícias para a produção de um vinho limpo e sem aromas decorrentes de acidez volátil. É bom se preparar para ter um esfregão ou um rodo nas mãos grande parte do tempo.
Seleção
É possível produzir mau vinho a partir de uvas extraordinárias, mas eu penso ser impossível fazer bom vinho com uvas más. A matéria-prima é fundamental em qualquer caso, mas quando o foco do produtor é qualidade, especial atenção será dada à seleção das uvas. Muitas vezes esse processo começa já no vinhedo, onde os cachos atingidos por doenças fúngicas ou predadores podem ser deitados no chão mesmo antes da colheita. Uma vez colhidas, as uvas chegadas à adega são derrubadas gentilmente sobre uma mesa com uma esteira por onde os cachos passam e são filtrados por olhos e mãos atentas a elementos indesejados, como passas, insetos, folhas e uvas partidas ou atingidas por fungos. Horas e mais horas de um dia de processamento podem ser passadas na mesa de seleção, onde conversas profundíssimas, induzidas pelo transe dos cachos a passar, acontecem.
Gestão da manta
No caso dos vinhos tintos, as uvas ou os cachos inteiros que passam nos critérios de seleção são levados a um recipiente para fermentar. Aqui o que acontece é que o líquido dos bagos partidos vai descendo com a gravidade, e a parte sólida da fruta flutua. Essa camada superior de uvas é chamada manta ou chapéu. Se ela não for irrigada com alguma frequência, vira terreno fértil para bactérias, que podem aportar aromas indesejados. Também é na manta que estão os polifenóis (taninos, cor, aromas), por isso manter o líquido em contato com os sólidos de vez em quando é o que permite extrair da fruta os elementos que se deseja para o vinho final. Os dois principais métodos aqui são as remontagens, em que se bombeia o líquido para cima da manta, ou a pigéage (ou pisa, não necessariamente a pé), em que, com a ajuda de um instrumento chamado pigeou, com um disco acoplado a um cabo longo, se empurra o chapéu para mergulhá-lo no mosto. De uma forma ou de outra, vão-se algumas horas do dia dedicadas à gestão da manta, sempre que um recipiente tiver um vinho a fermentar lá dentro.
Medições e adições
Em qualquer vinícola, enquanto houver mosto em fermentação, haverá uma pessoa encarregada de tirar, de cada tanque, barrica, ânfora ou o que for, temperaturas e algum índice que diga o percentual de açúcar ainda existente no líquido, que pode ser densidade, Brix ou algum outro. Esses dados indicarão o estágio e a cinética da fermentação, e são fundamentais, ao lado da degustação contínua desses projetos de vinho, para indicar o caminho que estão tomando e se eles precisam de algo. Uma fermentação que não arranca, por exemplo, pode precisar de mais temperatura. Uma fermentação que começa, mas não avança, pode precisar de nutrientes para as leveduras conseguirem trabalhar. As adições são controversas, pois muitos produtores optam por confeccionar seus vinhos com o mínimo possível de intervenções. Porém, entre ácidos, leveduras inoculadas, taninos, bactérias láticas, açúcar e outros, são um recurso bastante frequente em produtores convencionais – e nos menos convencionais também.
Prensa
Uvas brancas, via de regra, serão prensadas mal cheguem à adega e passem pela mesa de seleção. Já as tintas terão algumas semanas ou dias dentro de um recipiente para que vivam a fermentação em contato com as peles e possam extrair os polifenóis. De um jeito ou de outro, a etapa da prensa consiste na separação entre os sólidos e líquido, e a forma como esse processo é levado a cabo é fundamental na determinação do estilo do vinho. Toda a preparação para levar as uvas à prensa, mangueiras, bombas, higienizações, mais o tempo de acompanhamento da prensagem, que pode durar horas, mais a trasfega do vinho a outro recipiente onde seguirá vivendo suas reações, mais a limpeza de todo o equipamento usado, implica em horas de braço, olhos, boca e nariz em atividade.
Maturação
O tempo é uma das principais ferramentas de um winemaker. Supondo que a vinícola em questão amadureça seus vinhos em barricas de carvalho, será necessário fazer a gestão desse líquido, já que grande parte dele está destinada aos anjos (o líquido evaporado dos barris é chamado “parte dos anjos”). Além das medições ocasionais, será preciso atestar cada barrica (voltar a enchê-la até o topo) frequentemente e continuar degustando o que está se formando dentro delas. Nesse ínterim, trabalhos com vinhos de anos passados, como filtração, engarrafamento e outras tarefas de armazém, podem vir à tona.
Há um ditado português que diz que até o lavar dos cestos ainda é vindima. Normalmente não há tempo para isso antes que tudo esteja prensado e encaminhado, por isso entre a colheita e esse gesto final de arremate, há trabalho de sobra. Embora a quantidade de horas, a responsabilidade e a exigência física do trabalho realizado durante a vindima venham a ser bastante intensas, há certa magia no espírito de celebração que a abundância de uma colheita traz. Firmei vínculos preciosos com colegas com quem não teria conectado de outra forma, cuja pedra fundamental certamente foi a dureza do cansaço físico e emocional vivido em conjunto. Reavivei competências adormecidas. Descobri prazer em ter as mãos sujas da lida. Limpei monstros internos esfregando tanques de fermentação. Tive conversas filosóficas transformadoras na mesa de seleção. Todo ano eu amaldiçoo o momento em que decidi fazer outra vindima, e todo ano termino a temporada me perguntando onde será a próxima. Há algo de terapêutico no passar dos dias afogada em fruta.
*Fonte: Water Footprint Network