Regiões vitivinícolas de paisagens surreais
Já falamos aqui algumas vezes que muitas vidas são vividas antes de o vinho chegar à vida.
Existem as vidas que mantêm os solos minimamente férteis, as que não enxergamos e as que enxergamos. Existe a vida da planta que rende o fruto que rende o vinho que rende a alegria, e existe toda a vida que alimenta essa vida. Existem as vidas capazes de se reconhecer parte integral desse processo: as vidas humanas. Existe ainda a vida magnânima que se cria a partir dessas dinâmicas todas, que já é por si só algo em que se define uma coesão e uma identidade. É a vida do território.
No futebol, bem como no vinho, são muitas vezes cultivadas rivalidades entre territórios. Eu, que torço pelo Oregon, quando canto meu grito de guerra contra você, que torce por Napa, no fundo, no fundo, penso eu, não estou realmente torcendo contra você. Estou torcendo por mim. Estou meramente reconhecendo que existe uma identidade outra, distinta, que acaba por ser uma ferramenta de demarcação e solidificação da minha. No estádio é vestir a cor da roupa, reconhecer uma grande jogada quando ela acontece, saber de cor o número de taças conquistadas e os respectivos anos. No vinho é solo, chuva, vento, é a questão se é mar ou montanha, se neva ou faz 40 graus, se custa 29,99 uma garrafa ou se custa US$170.000, é a vegetação, os Jurássicos e Cretácicos, são as gentes, as comidas, as línguas e os sotaques. As definições do território, material ou figurativo, são fundamentais no processo de definição da identidade. (Só pra constar, eu vou torcer pela paz).
Tudo isso pra quê? Pra dar mais um caminho de compreensão da paisagem natural de uma região vitivinícola como parte integral daquilo que eventualmente vira um vinho. Isso fica mais latente em algumas regiões do que em outras. Então vamos falar delas.
Mosel
Existe um termo que descreve o trabalho de cultivo da vinha em regiões montanhosas: viticultura heróica. Parece dramático, mas ele faz sentido quando pegamos num transferidor e vemos o que são 65 graus de inclinação. Esse é o declive do vinhedo chamado Calmont, na região do Mosel, na Alemanha, onde comumente são reunidos esforços para ir buscar ao rio as pedras de ardósia que rolam encosta abaixo sempre que há chuvas fortes. Por que não abandoná-las de vez? Numa localidade a 50 graus de latitude, elas são fundamentais para a maturação dos frutos, pois têm a cor e a composição capazes de refletir a luz que bate na superfície do rio e redirecioná-la às vinhas. É uma equação delicada de fatores, e qualquer desequilíbrio afeta profundamente o caráter acídico, cítrico, mineral e pouco alcoólico dos vinhos locais.
Jerez
Claro caso em que a geografia física foi fundamental para a cristalização de uma identidade territorial bem vincada, mas em que a geografia humana também teve o seu papel. Jerez é o nome da região no extremo sudoeste da Espanha onde as vinhas deitam sobre solos de giz e beijam o mar. É pouco controverso que essas características têm influência sensorial sobre os vinhos locais, mas temos aqui uma situação onde o vinho, muito mais que outros, é escrupulosamente forjado pela mão humana. E isso se manifesta também na paisagem arquitetônica local. As bodegas monumentais da região foram projetadas de forma a aproveitar a influência dos ventos no desenvolvimento de micro-organismos que são fulcrais para a produção local – e que são parte integral de sua identidade.
Açores
Um vulcão entra em erupção. Parte da lava é literalmente cuspida atmosfera acima, arrefece com a temperatura do ar, solidifica e cai no chão: temos a pedra pomes. A outra parte da lava escorre morro abaixo e cobre o que até então havia no chão, dando origem a um novo solo: chamamos a ele basalto. Quem pisa em qualquer uma das nove ilhas do arquipélago dos Açores, 1400 km a oeste em linha reta de Lisboa, pisa nessa história. Tão intensos são os ventos nesse meio de nada do Atlântico, que foi preciso bolar um jeito de proteger as vinhas da corrosão salina. Surgiram assim os currais, pequenos nichos construídos de pedra vulcânica cujos empecilhos para uma vindima prática justificam, em parte, os preços audazes dos vinhos locais.
Priorat
Eu poderia falar do Douro, que tem 24.000 hectares de vinhas plantadas em socalcos, mas o Priorat, com sua dimensão diminuta, não é menos deslumbrante às retinas. A região, uma das duas únicas Denominações de Origem Qualificadas da Espanha, avizinha o Parque Natural da Serra de Montsant e é um fenômeno do ponto de vista geológico, com uma ilha de formações rochosas de uma espécie de ardósia, chamada licorella em catalão, em meio a um mar de calcário. Com suas plantações em terraços esculpidos em encostas super íngremes, sobre solos duros e pedregosos, é outro estandarte de viticultura heróica.
Lanzarote
Das duas uma: ou alguém muito criativo uma vez teve vontade de mimetizar a superfície da lua no planeta Terra, ou uma somatória de circunstâncias climáticas, geológicas e sociais levou viticultores da ilha mais ao leste do arquipélago das Canárias a abrir crateras no chão. Especialistas dirão que a segunda é verdade, mas tenho minhas dúvidas. Brincadeiras à parte, em Lanzarote os chamados hoyos permitem que as raízes atinjam a camada de terra vegetal soterrada sob os 3 metros de cinza vulcânica e otimizam a retenção da escassa água de chuva, preciosa num solo tão pobre.
Mendoza
Uma das regiões de eleição dos brasileiros que decidem ver de perto uma região produtora de vinhos, Mendoza é uma sobreposição de extremos: um deserto aos pés de uma cordilheira com picos de neve eterna; a afluência irrefreável das águas de degelo andinas e a meticulosidade de sistemas de irrigação gota a gota; as altitudes que muitas vezes significam escassez severa para as vinhas e ao mesmo tempo abundância e poder para os vinhos. Com pouco mais se descreve esse território insólito cujas paisagens são cada vez mais chamariz dos enófilos desse mundo.
Barossa Valley
Na grande região de South Australia está a pequena demarcação de Barossa Valley, onde estão plantadas e passam bem algumas das vinhas mais antigas do mundo. Syrah (aqui Shiraz), Grenache e Mourvèdre são algumas das castas que esbanjam troncos extraordinariamente grossos e sinuosos em terrenos que variam entre planos, no vale, e em encostas. Porém, esteja avisado: se for visitá-las, será necessário tirar os sapatos e vestir botas esterilizadas. Vinhas tão antigas como essas plantadas no início do século 19 estão em pé franco (assunto para outra coluna), e qualquer risco de infestação deve ser eliminado. Estamos lidando com um patrimônio vivo insubstituível.
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Douro, Etna, Stellenbosch, Chablis, Jumilla, Santorini, Atacama, Ningxia, Vale do São Francisco… com olhos de ver, há variadíssimas regiões vitivinícolas espalhadas por esse mundão afora que impressionam pela sua singularidade. Algo interessante de se notar em muitas delas é que, embora possamos problematizar de muitas formas a monocultura que o cultivo da vinha geralmente implica, ela é também, muitas vezes, o que assegura a sobrevivência humana numa região. Seja em Lanzarote ou no Douro, não há muito mais que se possa cultivar e a que se consiga agregar valor, a ponto de viabilizar alguma atividade agrícola em condições tão árduas, para além da vinha. Mais um ponto em que fica latente a relação tão íntima que o vinho tem com suas origens. Viva a diversidade nisso tudo!