Toda acidez será neutralizada (e vai te fazer salivar) Pt II

Toda acidez será neutralizada (e vai te fazer salivar) Pt II

Olá pessoal! Conforme prometido, seguimos com nossa série sobre acidez.

Na primeira parte desta coluna falamos sobre a importância da acidez no vinho e como ela afeta nossa experiência gustativa. Agora na parte dois, a missão, vamos explorar a multissensorialidade da acidez e entender um pouco mais como ela contribui para nossa experiência com vinho. Além de uma discussão sobre o papel da saliva (porque afinal o que a gente de fato experimenta é um blend de vinho e saliva, nao é mesmo?)

Vamos lá?

Explorando a Multissensorialidade da Acidez no Vinho

A acidez no vinho não é uma simples questão de pH. Trata-se de uma interação complexa entre vários ácidos orgânicos e a resposta sensorial que eles provocam. Cada tipo de ácido orgânico presente no vinho – tartárico, málico, cítrico, succínico, láctico, entre outros – possui características próprias que afetam a intensidade da acidez e a sensação que ela causa na boca.

Quando você sente a acidez, sua boca automaticamente reage com salivação, especialmente nas laterais. Essa salivação não é apenas um reflexo qualquer; é um mecanismo de proteção do nosso corpo contra a irritação que a acidez pode causar nas células epiteliais da boca. Quanto maior a acidez, maior a salivação, e isso pode ser uma pista indireta da presença de elementos ácidos no vinho.

Além da intensidade, a temporalidade da acidez – ou seja, quanto tempo ela dura e como ela se desenvolve – também é crucial. Ácidos como o tartárico e o málico tendem a dar uma impressão de volume e persistência prolongada na boca, enquanto ácidos mais fracos como o láctico podem ser percebidos como menos intensos e de curta duração. Isso está relacionado às propriedades tampão dos ácidos orgânicos, que lutam contra a saliva para manter o pH do vinho.

Os ácidos orgânicos não ativam apenas os receptores de gosto ácido. Eles também podem ativar receptores complementares, influenciando outras sensações gustativas e táteis. Por exemplo, o ácido succínico (um ácido produzido pelas leveduras durante a fermentação), além de ser ácido, pode induzir uma leve sensação umami. Já o ácido tartárico pode causar uma sensação de aspereza, quase como se estivesse secando a boca, devido à sua interação com a saliva.

Outro aspecto interessante está relacionada a linguagem, em como descrevemos a acidez usando termos que remetem à tensão e contração. Alguns ácidos, como o málico, são descritos como “afiados” (sharp em inglês) e “angulares”, evocando a etimologia da palavra “acidez”, que vem do latim “acere”, significando de fato ser algo afiado ou penetrante. Essa percepção de acidez como algo que “pica” ou “cutuca” a língua está profundamente enraizada na nossa experiência sensorial.

Finalmente, não podemos esquecer que a acidez no vinho nunca age sozinha. Ela está sempre em interação com outros componentes do vinho, como a doçura, o álcool e a adstringência dos taninos. Essas interações podem modificar nossa percepção da acidez, tornando-a mais ou menos pronunciada dependendo do equilíbrio entre os outros elementos presentes. Vamos falar sobre isso mais adiante.

Interações Sensoriais: Receptores Gustativos e Acidez

Os receptores gustativos são essenciais para a nossa percepção dos gostos básicos: doce, salgado, amargo, umami e, claro, ácido. Cada tipo de gosto é detectado por células gustativas específicas que se encontram agrupadas em botões gustativos nas papilas da língua. Essas células são altamente especializadas e expressam receptores específicos para um único tipo de gosto básico. Por exemplo, uma célula que responde ao doce não responderá ao amargo, e vice-versa.

Além de ativar os receptores de gosto ácido, os ácidos orgânicos presentes no vinho  também podem interagir com outros tipos de receptores, gerando sensações adicionais. Por exemplo, o ácido succínico pode ativar receptores de umami, adicionando uma camada de complexidade ao perfil gustativo do vinho. Da mesma forma, o ácido tartárico pode interagir com a saliva e induzir uma sensação de secura ou adstringência, devido à sua capacidade de modificar o pH local.

Essas interações sensoriais demonstram como a acidez não é apenas uma sensação isolada; ela é modulada por outros elementos presentes no vinho e pela nossa própria fisiologia. A maneira como diferentes ácidos ativam múltiplos receptores contribui para a complexidade e a profundidade do sabor que experimentamos.

A Interação da Acidez com Outros Elementos do Vinho

Como falamos anteriormente, quando degustamos um vinho, a acidez não atua de forma isolada. Ela está em constante interação com outros componentes como a doçura, o álcool e a adstringência. Essas interações são cruciais para o equilíbrio do vinho e para a percepção geral do seu sabor.

A presença de componentes doces pode suavizar a percepção da acidez. Isso porque os gostos doces e ácidos têm um efeito de compensação mútua. Quando um vinho tem um nível mais alto de doçura, a intensidade percebida da acidez é reduzida, criando uma sensação mais harmoniosa e menos agressiva. Isso é frequentemente observado em vinhos de sobremesa, onde o alto teor de açúcar equilibra a acidez elevada, resultando em uma experiência gustativa agradável e equilibrada.

A acidez também interage com o teor alcoólico do vinho. O álcool tem um efeito de aquecimento na boca, que pode ser equilibrado pela sensação refrescante da acidez. Em vinhos com alto teor alcoólico, uma acidez adequada pode proporcionar uma sensação de frescor, reduzindo a percepção de calor do álcool. Esse equilíbrio é fundamental, especialmente em vinhos provenientes de regiões quentes, onde os níveis de álcool tendem a ser mais elevados devido à maturação das uvas.

Outro componente importante na interação com a acidez é a adstringência, proveniente dos taninos. A acidez pode intensificar a percepção de adstringência, pois os ácidos do vinho podem provocar a contração das células epiteliais da boca, aumentando a sensação de secura e rugosidade. No entanto, essa interação também pode adicionar uma dimensão interessante ao vinho, especialmente em vinhos tintos, onde a acidez e a adstringência podem trabalhar juntas para criar uma estrutura complexa e satisfatória.

O Papel da Saliva na Percepção de Acidez

A saliva é mais do que apenas um líquido inerte em nossa boca. Ela é uma mistura complexa de água, íons, proteínas, enzimas e outros compostos que desempenham um papel vital na degustação de vinho. Cada gole de vinho que tomamos interage com a saliva, criando uma experiência gustativa única que é modulada por essa interação.

Primeiro, vamos entender a composição da saliva. A saliva contém uma variedade de íons, incluindo cálcio, fosfato, potássio e sódio, além de proteínas. Esses componentes não são neutros; eles influenciam diretamente como percebemos os gostos.

A saliva também tem um efeito tampão significativo na acidez. Quando ingerimos um vinho ácido, a saliva atua para neutralizar essa acidez, ajustando o pH da boca.

Além de neutralizar a acidez, a saliva ajuda a proteger as células epiteliais da boca de irritações causadas por ácidos fortes. A produção de saliva aumenta em resposta à presença de ácidos, funcionando como um mecanismo de defesa. Isso não apenas dilui os ácidos, mas também ajuda a remover resíduos de alimentos e compostos ácidos da superfície da língua e das mucosas, mantendo a boca em equilíbrio.

Outro aspecto curioso da saliva é sua capacidade de influenciar a percepção de outros gostos. A saliva pode interagir com compostos doces, salgados, amargos e umami presentes no vinho, modificando sua intensidade e persistência. Por exemplo, a presença de compostos doces na saliva pode atenuar a percepção de acidez, criando um equilíbrio mais harmonioso.

A individualidade da composição salivar também desempenha um papel crucial na experiência gustativa. Estudos mostram que a composição da saliva varia significativamente entre diferentes pessoas, influenciada por fatores genéticos, dieta e saúde bucal. Isso explica por que duas pessoas podem ter percepções diferentes do mesmo vinho. Uma pessoa com uma composição salivar rica em proteínas específicas pode perceber menos acidez e mais suavidade, enquanto outra, com menos dessas proteínas, pode encontrar o vinho mais ácido e agressivo.

Além disso, a saliva contém mais de 3.000 proteínas diferentes, das quais muitas ainda não foram completamente caracterizadas. Essas proteínas desempenham papéis variados, incluindo a facilitação da digestão, proteção contra microrganismos e modulação da percepção gustativa. As bactérias presentes na boca também contribuem para a degustação do vinho, participando da degradação de moléculas e influenciando a liberação de compostos aromáticos.

Outro ponto relevante é a variação na produção de saliva entre indivíduos, categorizados como “alto fluxo” e “baixo fluxo”. Pessoas com alto fluxo salivar tendem a diluir e tamponar ácidos mais rapidamente, resultando em uma percepção de acidez menos intensa. Em contraste, aqueles com baixo fluxo salivar podem perceber os ácidos de forma mais pronunciada e duradoura.

Quem já colocou saliva em um machucado instintivamente agora vai se surpreender com essa curiosidade: a saliva possui propriedades antifúngicas, antivirais e antibacterianas, além de conter uma molécula conhecida como opiorfina, que tem efeito analgésico. Esse efeito analgésico pode alterar nossa percepção de irritação e acidez ao longo de uma degustação prolongada, mudando nossa resposta à acidez do vinho.

Entendeu porque a saliva não é apenas um líquido neutro na boca? Ela é fundamental para a homeostase da boca, digestão e lubrificação. A interação dinâmica entre o vinho e a saliva cria uma experiência gustativa rica e complexa, única para cada indivíduo. Ao degustar vinho, estamos, na verdade, saboreando uma combinação de vinho e saliva, o que torna cada experiência verdadeiramente singular.

Aspectos Neurocientíficos da Degustação de Ácidos

Como já vimos em outras colunas nossas, quando degustamos um vinho, a jornada do gosto até começa na boca, mas é o cérebro que processa a percepção. Assim, a percepção dos gostos, incluindo a acidez, é um processo complexo que envolve a ativação de receptores gustativos, a transmissão de sinais nervosos e a interpretação dessas informações pelo cérebro.

Logo, a percepção gustativa é influenciada por uma rede complexa de interações entre diferentes regiões cerebrais. Além do córtex gustativo, outras áreas do cérebro, como o sistema límbico e o córtex pré-frontal, também participam do processamento do gosto, adicionando dimensões emocionais e cognitivas à nossa experiência gustativa. Isso explica por que o mesmo vinho pode evocar diferentes emoções e memórias em pessoas distintas.

Outro aspecto é a plasticidade da percepção gustativa. Fatores como dieta, exposição repetida a certos gostos e até mesmo o estado emocional podem influenciar nossa sensibilidade aos gostos. Por exemplo, pessoas sob estresse podem perceber a acidez de maneira mais intensa, enquanto a exposição crônica a alimentos ácidos pode levar a uma dessensibilização gradual, diminuindo a intensidade percebida desses gostos.

Finalmente, a interação entre a percepção gustativa e outras sensações, como o tato e a temperatura, adiciona outra camada de complexidade. A acidez pode induzir sensações táteis de aspereza ou secura, e essas sensações são processadas simultaneamente com o gosto, contribuindo para a experiência gustativa completa

É isso (por ora)! Espero que tenham gostado. Próxima coluna terá a parte três e final, onde iremos falar sobre a acidez no contexto da degustação de vinhos. Vamos, inclusive, trazer algumas abordagens, como o método do MW Nick Jackson para percepção da acidez às cegas sob a ótica da sua estrutura.

Até o mês que vem!

Assinatura Única Pablo Fernandez

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