Entrevista com Marina Santos
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Onde você nasceu e quais são as suas primeiras memórias de infância?
Eu nasci em Tapejara no noroeste do RS. Venho de uma família bem humilde, pais separados, eu vivia com a minha mãe e meus dois irmãos menores numa casa que tinha pouco mais de 30 m2 e não tínhamos água encanada. Minha mãe saia às 5 h da manhã para trabalhar, eu ia para escola e cuidava dos meus irmãos menores desde pequena. Eu morava exatamente na divisa entre o fim da cidade e o início da parte rural, então era possível ver as plantações de soja quase engolirem a mata nativa que a cada ano ficava menor. Passava um pequeno rio dentro desta mata e lá tinha muita fruta nativa, coquinho, guabiroba, guabiju, pitanga, entre outras. A mata não era nossa, mas a gente ia lá tomar banho de rio, comer fruta no pé, brincar nos galhos, fazer casas nas árvores e brincar na terra de pés descalços. A minha infância não foi fácil, mas esse lugar, essa mata, salvou minha infância. Todas as minhas memórias felizes de criança são deste lugar. Ali eu podia ser criança, porque fora dali eu precisava ser responsável, ter uma atitude de adulta. Morei neste lugar até os 12 anos, depois ele foi completamente destruído para a cidade poder crescer e os moradores foram realocados para um novo bairro.
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A sua família já tinha alguma cultura de produzir ou beber vinho? Como o vinho surgiu na sua vida?
Na região do RS que nasci não se bebe vinho e a pouca uva que se produz era de mesa, então meu primeiro contato com a uva e o vinho foi já adulta. O ano era 2004 quando conheci um rapaz, o Israel, numa festa na minha cidade. Ele era da Serra Gaúcha e é super clichê, mas foi amor a primeira vista. Namoramos, noivamos e nos casamos em 3 meses e fomos morar juntos na cidade dele (estamos juntos até hoje rsrs). A família dele era de descendentes italianos, então o vinho estava presente nas refeições cotidianas, nos encontros de família, foi assim que aprendi a beber vinho. Eles não eram produtores de vinho, pelo menos não na geração do Israel. Nessa época, eu cursava a faculdade de Turismo e houve a oportunidade de fazer um curso técnico em turismo em Bento Gonçalves com muitas vivências. Decidi então fazer esse curso também, que era no Senac. Mas, só tinha ônibus tarde da noite para voltar para minha cidade e ofereciam nesse Senac também era oferecido o curso de Sommelier no período da noite. Então, resolvi fazer o curso de Sommelier para não ficar sem ter o que fazer até hora de pegar o ônibus. Foi aí que eu fiquei apaixonada por esse universo do vinho. Quanto mais eu aprendia, mais queria saber sobre. Descobri depois que na cidade tinha a única faculdade de Enologia do país. Fiquei muito tentada a fazer Enologia, mas precisaríamos nos mudar para Bento Gonçalves, justo em um momento que estávamos com muitos planos de mudança de vida, de viver da terra ou algo com agriturismo. Conversamos muito e então decidimos vender a casa e nos mudar com toda família para Bento Gonçalves. No inicio fomos só eu e Israel, depois encontramos uma propriedade em Pinto Bandeira e trouxemos nossos pais também. Eu comecei a cursar Viticultura e Enologia, a faculdade era no período da tarde e noite, então durante a manhã eu trabalhava em uma vinícola. Nos 3 primeiros anos da faculdade, trabalhei em diferentes setores dentro de 5 vinícolas da região. Já, no ultimo ano, por conta do estágio, fui para uma instituição de pesquisa para desenvolver meu TCC em viticultura orgânica. Acabei emendando numa pós-graduação em Viticultura e fiquei mais 2 anos nesta instituição.
Acervo da Marina Santos
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Você trabalhava em uma famosa vinícola e optou por sair e se dedicar à produção de vinhos mais puros e com menos intervenção. Na época, você chegou a receber críticas por essa decisão? Como as pessoas ao seu redor enxergaram e reagiram a essa movimentação que não foi apenas de carreira, mas também de propósito?
Eu trabalhei em muitas vinícolas, mas nunca no setor que eu queria. Trabalhei com turismo, com cursos, com eventos e fui até supervisora comercial de vinícola, mas em todas estas vagas me inscrevi para trabalhar com viticultura ou na própria vinícola – fazendo o vinho. Mas, nunca me deram essas oportunidades. Seja pelo motivo que for, não me deram o benefício da dúvida de me contratar para fazer o que eu queria. Eu percebi, então que teria que antecipar meu projeto de cultivar uvas e fazer vinho para poder enfim ter contato com o que eu queria trabalhar. Esse movimento de querer trabalhar com produção sustentável já vinha desde antes da faculdade. Lá eu já era tachada de “a louca da biodinâmica” há bastante tempo rsrs. Nesta época (entre os anos de 2012/13), mal se ouvia falar em produção orgânica, quanto mais em biodinâmica. Escutei bastante a frase: esse tipo de viticultura não dá certo aqui na Serra Gaúcha!. Então eu perguntei: mas alguém já tentou?. E eu ouvi sempre a mesma resposta: Não tentaram, mas é porque sabem que não dá certo. Bom, percebi então que eu tinha muito a fazer, alguém tinha que tentar! Nunca é fácil, e as pessoas, no geral, nunca estiveram receptivas a mudar a forma de pensar. Eu estagiei com produtores orgânicos de uva, eu dei dois anos de assessoria técnica para viticultura sustentável, eu viajei para outros países para aprender sobre o assunto e também fiz parceria com produtores com videiras mais velhas para aplicar os princípios deste tipo de viticultura e ver os resultados. Até que em 2015 eu consegui aplicar na minha propriedade todos os princípios que acreditava e, mesmo provando que era possível, a maioria ainda torcia o nariz.
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Sabemos que é laborioso o cultivo de uvas orgânicas, quem dirá biodinâmicas. Como foi o processo e como foi receber a certificação biodinâmica Demeter? Pode também contar um pouco, para quem não está familiarizado, sobre o que se trata?
Explicando um pouquinho do processo todo, não é um método de trabalho mais laborioso do que o método convencional. Sempre digo que se você vai subir no trator para aplicar chás orgânicos e preparados biodinâmicos, o produtor convencional também está subindo no trator para aplicar o agrotóxico dele neste mesmo momento, estamos debaixo do mesmo céu. A diferença é que eu tenho uma visão não imediatista do cenário e olho para a terra que eu tenho, como um organismo a ser cuidado. Uma pessoa não fica doente de propósito, né? Não fazemos de tudo para pegar gripe. Não é algo totalmente consciente, mas a gente se previne. Tomamos pequenos cuidados diários para não adoecer. Eu tenho esse olhar preventivo na viticultura, eu trabalho com um sistema respeitoso, de forma que a terra e as vinhas estejam em equilíbrio para quando as condições estiverem desfavoráveis, elas atravessem de forma mais branda. Na agricultura convencional não há prevenção, quando a condição está desfavorável, a solução tem que estar num frasco contendo agrotóxico. Mesmo para nós seres humanos, se somente remédio resolvesse qualquer doença seria muito fácil de lidar, mas mesmo tomando remédio ainda precisamos de cuidados extras (se alimentar bem, descansar, etc). Porque com as plantas seria diferente? Tudo que trabalho nas vinhas, os insumos orgânicos e biodinâmicos, são todos baseados em ciência e em conhecimento. São formas de curar diferentes, mas nos mesmos momentos que o produtor convencional. No início, nossa propriedade foi certificada por outra certificadora, pelo sistema participativo. Nesse sistema eles certificam um grupo e não uma propriedade, e este grupo se autofiscaliza. Era um grupo composto por propriedades orgânicas e biodinâmicas. São visões e comprometimentos diferentes, embora tenham muitos pontos em comum e, neste sistema, se uma pessoa do grupo fizer algo errado, todos perdem a certificação. A certificação biodinâmica é exclusiva da empresa Demeter e é individual. Nós optamos por ela porque ela compreende e atesta todos os esforços de uma propriedade para ser sustentável, que é algo bem maior que ser orgânico ou biodinâmico.
A Demeter fiscaliza a preservação ambiental da propriedade, o incremento da biodiversidade, a conservação e qualidade da água, a procedência das sementes e insumos, e a elaboração, conservação e a aplicação dos preparados biodinâmicos, o direito e o bem estar dos funcionários e tudo isso tem 100% de rastreabilidade.
Por exemplo, na Vinha Unna, desde as construções todas tem mais de 50% de material sustentável, temos reserva ambiental em agrofloresta, corredores biológicos de flores, árvores e ervas aromáticas para a fauna local, temos sistema de tratamento de efluentes da vinícola, adubação verde com plantas de cobertura para o solo (zero química), sistema de drenos subterrâneos para escoamento da água da chuva que pode vir contaminada de outras propriedades, composteiras para fazer nosso composto biodinâmico, estufa de produção de mudas e horta de ervas. Nosso comprometimento é grande! Estamos há apenas dois anos com esta certificação, mas é um trabalho que vendo sendo desenvolvido há 10 anos.
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Hoje você está tocando um outro projeto na França, mais precisamente na região do Jura. Porque você escolheu o Jura e quanto tempo pretende ficar na região?
Eu conheço a França desde 2015, visitei várias regiões, mas foi em 2016 que conheci o Jura, na França, as paisagens, a simplicidade das pessoas e seus vinhos únicos. Ser produtor de uvas convencional lá é a exceção, a maioria é vinhateiro natural. Ficamos muito apaixonados pelo lugar e passou a ser um sonho, talvez, um dia morar ou ter um projeto no Jura. Em 2018 a nossa propriedade passou a sofrer pressão de um condomínio de chácaras (ilegal), que era vizinho da nossa propriedade. Eles alegavam que deveríamos retirar parte das videiras de Peverella e Chardonnay para passar uma estrada já prevista ali. Havia desmatamento na divisa e outros tipos de coação pesada. Então, em 2020 e depois de 8 anos, por medo e cansaço, decidimos vender nossa propriedade. Foi o início da pandemia e tomamos uma decisão, mudar para França de vez. Neste momento, nossa família ficou muito triste com a nossa partida e a possibilidade do término do projeto Vinha Unna e Projeto Seiva. Eles nos propuseram dar continuidade aos projetos em uma outra área de 2 hectares da família, há poucos quilômetros da antiga propriedade. Recomeçamos em 2020 a Vinha Unna do zero, implantando videiras, refazendo estruturas e montando uma pequena equipe de 3 pessoas. No final de 2021 finalmente mudamos para França, só com uma mala cada um e muita coragem. A mudança foi definitiva. Um ano se passou, compramos uma casa do ano de 1786, estamos renovando ela aos poucos e já fizemos nossa primeira vindima no projeto novo ( L’éther Créatif – o Éter Criativo em português). Esse ano vamos implantar nossas vinhas próprias de Savagnin e abrir uma pequena pousada.
Os projetos no Brasil continuam, nosso restaurante – Champenoise Bistrô, a Vinha Unna e o Projeto Seiva. Eles são projetos de resistência e vão continuar para mostrar que é possível viver e prosperar de outra maneira. Nossa família nos ajuda a cuidar deles. Continuamos indo e vindo entre Brasil e França, mas nossa casa agora é no Jura.
Acervo da Marina Santos
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Em 2022 seu projeto no Brasil, a Vinha Unna, celebrou 10 anos. Conte-nos mais seus planos presentes e futuros para a Vinha Unna?
A Vinha Unna é um projeto não só de resistência, mas sempre foi de inovação também, sempre envolveu muita pesquisa, muita experimentação, muita colaboração entre países e seus produtores nesta caminhada evolutiva que é produzir de forma sustentável. Não é um caminho fácil porque você precisa literalmente brigar sozinho por algo que acredita e que está correto. Ao longo de 10 anos vimos o setor e o mercado do vinho brasileiro falar mal deste tipo de trabalho, depois falar bem do importado que faz a mesma coisa que fazemos, para em seguida usar termos como vegano, natural, sustentável, laranja, sem sulfito e tentar fazer a mesma coisa que fazemos. Só que, sem o principal, ninguém quer produzir uva de forma orgânica e biodinâmica, tem horas que cansa. Foram 10 anos celebrados com uma carga de pressão muito grande, mas sobrevivemos e não nos rendemos, e a ideia é que a gente continue por muito tempo. Final do ano passado começamos timidamente a receber turistas e ministrar cursos. Ainda é difícil porque somos pequenos para atender a demanda e ao mesmo tempo trabalhar. Foram muitos investimentos para começar do zero e ainda estamos nos reerguendo. Temos previsão de fazer uma pequena pousada com o tempo na propriedade toda em material sustentável. E tem outros projetos saindo do forno para Vinha Unna e Projeto Seiva, mas esses ainda são surpresa!
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Em algum momento do seu Tedx Talks, há 3 anos atrás, você se fez a seguinte pergunta, ao contar sua trajetória: Será que há espaço (no mundo) para nossas ideias? A pergunta é, você tem encontrado esse espaço?
Encontrar seu espaço leva tempo. No começo você se sente meio ilha sabe? É tanta gente dizendo que não vai dar certo que você quase acredita. Mas, primeiramente eu sou muito focada e otimista (não é positividade tóxica), mas eu estou sempre numa outra sintonia, acho que sempre há um jeito para tudo. Depois, eu acredito muito em redes, e às vezes você só precisa dividir seus sonhos e ter trocas com as pessoas certas, e não estou falando de networking. Falo de alinhamento de propósito. É incrível como as coisas fluem quando você se afasta de quem quer só surfar uma onda, entende? Hoje eu já passei dos 40 anos, nem antes e nem agora tenho mais paciência para discursos rasos e falta de comprometimento. Vejo que há muitas pessoas desnorteadas, sem propósito, atirando para todos os lados, não é o tipo de rede que quero ter por perto. Quando você é mulher, principalmente, todas sabemos que o grau de dificuldade de ter acesso e ter voz é muito maior. Então, com certeza também será necessário se impor, dizer umas verdades e manter-se firme nas suas convicções para achar seu espaço.
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Existe alguma uva do seu coração e que estará presente em todos os projetos assinados por Marina Santos?
Quando comecei a trabalhar com vinho eu não tinha muita presente o conceito de adaptação de cepas no meu trabalho e no meu paladar. Como o Brasil não tem cepas autóctones e eu via a cada ano novas variedades de uvas sendo trazidas ou desenvolvidas, eu fiquei desconcertada, pois isso era o extremo oposto do que eu via acontecer em outros países. E, eu estava vivenciando in loco que variedades normalmente antigas eram melhor adaptadas, sofriam menos com as mudanças climáticas e davam vinhos muito mais expressivos, onde era possível ver de verdade o terroir. Foi ai que minha visão mudou.
Hoje todo meu trabalho está pautado em adaptação e recuperação de cepas antigas que expressem o terroir.
Se falar de Pinto Bandeira, com certeza a Cabernet Franc se expressa lindamente. Já, see eu falar de Jura, meu coração é da Savagnin.
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O que a Marina Santos de hoje falaria para a Marina Santos recém-chegada no mundo do vinho?
Eu diria para ela que novas ideias é que mudam o mundo, não é a tradição que faz isso. Diria para continuar estudando e buscando sempre, viajando, interagindo, experimentando e experenciando. Isso tudo para falar com propriedade, para saber como agir, para se defender, para contribuir efetivamente para as mudanças que ela quer ver. Ah, e só tem mais uma coisa, não será fácil, (mas nunca foi né?). Faz parte. Mas, será um caminho muito mais cheio de alegrias, pois será pautado em verdade e em desejos genuínos. E, se não der certo, você sempre poderá mudar, de ideia, de sonho ou de lugar.
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