Anos passados
O texto que abre o ano na Única traz uma linguagem nova por aqui: a linguagem poética.
Nossa colunista Lana Ruff estreia este espaço em que juntamos duas artes que se pertencem: o vinho e a poesia. O poema inaugural, Anos passados, fala sobre os processos e caminhos do solo ao fim da vida de um vinho, passando pela fotossíntese, formação dos frutos, engarrafamento e evolução.
E como na Única a sua participação é fundamental, os próximos temas poéticos é você quem decide. Estamos de ouvidos abertos para o seu pedido ou sugestão de um assunto que você quer ver transformado em poesia: pode ser uma uva, uma região, uma história, um lugar, uma curiosidade, um nome, uma história vivida… Mande para unica@vinhosunica.com.br um email com a sua vontade. Quem sabe ela não é escolhida pra virar poema no mês que vem?
Anos passados
- inverno
uma fatia de chão
um punhado de pedra ancestral
em conversa com céu
em grão, em barro ou cal
juntar-se em bandeja verde os nomes
luz
e
açúcar
somente onde haja também sal
passear-se em sangue branco espesso
o que tira a fome e mata a sede
erguer-se corpo castanho fértil enrolado
plantar-se em rede
crescer-se braço pra alcançar sol
pernas pra achar sombra
multiplicar-se ao vento
espiralar-se com o tempo
- primavera
acabarem-se as águas do frio
na última gota do primeiro pranto do ramo em poda
roda em rio
anunciante trago:
flor
um cacho ou mil
e o calor
reluzente em lago
e o pintor pra quem é de cor
concentrarem-se os chamarizes e
aguardar-se que os dentes arrebentem cada bago
qual não seja o bago tenro
adoçar-se com o tempo
III. verão
das mãos aos cestos
do cesto aos pés
na lida dura
liquefazer-se a obra da planta
à comedora invisível dar de comer
altiva em sua quentura
em sua longa refeição criativa
mergulhar-se a manta, o lenço
aprofundar-se com o tempo
- outono
deitar-se a criança no berço em sono mudo
de vidro
morrer-se como morre todo dia quem vive
o ar respirado dar matéria aos sentidos
o mesmo ar assaltar cor e corroer as vértebras
acusar decurso na ferrugem do portão aberto
proceder-se como tudo mais na outra face do vidro
ceder-se ao declive lento
avinagrar-se com o tempo