A multidisciplinaridade do vinho

A multidisciplinaridade no vinho

Uma ode ao conjunto de lentes para o mundo que ele oferece

Já andei escrevendo por aqui sobre os expatriados de outras carreiras que caem no mundo do vinho pra nunca mais sair. Eu sempre me intriguei com a diversidade de profissionais de outras áreas que fui conhecendo nesses anos vínicos – de advogadas a artistas plásticas; de médicos a professores Waldorf; de biólogas a engenheiros elétricos. Mas, ao passo que ia me intrigando, também ia identificando que esse pessoal todo vem buscar um aspecto em comum. Algo que é transversal aos blogueiros, cozinheiros e carpinteiros que terminam no vinho. Algo que justifique, até certo ponto, a insanidade em querer decorar as apelações do Loire, as associações de castas e regiões italianas ou os Vinos de Pago na Espanha. Algo tão simples quanto: conhecimento.

Há muitos produtos de especialidade no mundo: café, cerveja, chá, queijo, mel e por aí afora, mas o vinho tem qualquer coisa de absurdo no que diz respeito a quão fundo a gente já foi, enquanto humanidade, para interpretar essa bebida. Eu acho que é esse buraco negro que nos atrai e nos faz gravitar pra dentro dele. É difícil se cansar do vinho porque ele sempre tem algo interessante pra dar, algo novo que você ainda não sabe, uma perspectiva nova a aprender. E se pode aprender ouvindo, olhando, trocando em prosa e, no que é a sua grande vantagem diante de outros temas: vinho se aprende bebendo. Vinho se aprende à mesa, comendo, em convívio, celebrando, sendo feliz. É mesmo difícil cansar do vinho.

“A investigação in loco permite ao nosso cérebro estabelecer sinapses a partir de conexões multidimensionais”

Eu tenho levantado aqui a bandeira do enoturismo por observar que é uma coisa legal tanto do lado eno, quanto do lado turismo. Ou seja, é tanto uma modalidade consciente, engajada e enriquecedora de viajar, quanto um banho de conhecimento e uma profunda exploração sensorial pra quem busca saber sobre vinho. Acontece que essa investigação in loco de um tema proporciona o ver, o ouvir e o tocar realidades inéditas que os livros, por mais mágicos portais que sejam, não facultam. Ela permite ao nosso cérebro estabelecer sinapses a partir de conexões multidimensionais, e a nossa memória, que adora umas injeções de experiências sensoriais nas vivências que vamos tendo, agradece.

Com tanto pra aprender e apreender do vinho, a visita ao seu local de feitura é, pra dizer o mínimo, uma boa ideia, já que reúne cada uma das disciplinas que permeiam os seus saberes. Vamos a elas.

Há lugares no mundo que, pelas contas dos geneticistas e arqueólogos, já vão em mais de 6000 safras. Por isso, no que concerne à história do vinho, podemos falar do Cáucaso, da Grécia Antiga e do Império Romano, da 2ª Guerra Mundial, da colonização das Américas, ou dos lagares onde o bisavô de alguém pisava as uvas pro vinho que a família bebia a cada ano. Algo com tanta conexão com o seu território, e ainda dotado de uma vida que evolui, dentro da garrafa, da sua juventude ao seu declínio, há de manifestar também conexões profundas com os tempos que vieram antes de si – e com os que virão.

Por falar em territórios, os traços que lhes dão forma são parte integral do estudo dos vinhos que neles são feitos. Os rios e outros corpos d’água, os montes e as encostas que os delineiam, a luminosidade, a temperatura e os padrões de suas variações, as chuvas, as secas, os ventos e as térmicas de ar, os solos e suas qualidades, profundidades e capacidades, tudo isso e mais um pouco pertence ao campo da geografia física de uma região e é motivo para fascínio de muitas mentes. Também são todos assuntos que passam a estar mais presentes para quem se propõe a desvendar o que caracteriza uma ou outra taça.

Mas muito além do clima e da orografia, há ainda a geografia humana que se interpela com o ofício e a investigação do vinho. O que essa lente pela qual se pode esquadrinhá-lo nos mostra são simplesmente as mãos que estão por trás dele. A vida nas grandes cidades nos distancia da matéria-prima, de forma que sobra pouco tempo para lembrar que um alimento embalado na prateleira do mercado não brotou assim por geração espontânea. Alguém cultivou a alface da minha salada, alguém debulhou o milho que comprei enlatado, ou alguém deixou de debulhá-lo para que uma máquina pudesse fazê-lo. De uma maneira ou de outra, houve uma série de agentes impactados, positiva ou negativamente, ao longo de toda a cadeia de produção de uma mercadoria. Essa movimentação das comunidades é causa e consequência de como se desenvolvem, ao longo dos séculos, os saberes e as tradições em torno de iguarias como o vinho, que não só respondem aos imperativos culturais, como colaboram integralmente para desenhá-los.

Aulas das quais muito me arrependo de não ter prestado atenção na escola são as de biologia. Fui re-aprender depois de adulta os mecanismos da germinação, da reprodução e do crescimento das plantas, pois a videira é de tal forma sedutora, que faz qualquer um querer entender seus desejos mais profundos, seu apreço masoquista pelo estresse hídrico, seu eterno antagonismo entre a fragilidade e a resiliência. Volta à escola quem tem interesse na anatomia da planta, no papel de cada um de seus órgãos, na cor de suas flores minúsculas, nos caminhos de transformação dessas flores em cachos de uva e em todos os polifenóis que ela engenha pra dizer ao mundo, através de sua fruta: “venham, que eu sou colorida, cheirosa e saborosa”.

O entendimento do que é esta planta – e quem são as outras com as quais ela interage – é prerrogativa para fazer bons vinhos, uma vez que respalda as decisões quanto à forma de conduzi-la no campo. Por isso não dá pra escapar – e muitos não queremos – dos caminhos de cultivo da vinha. Tudo o que diz respeito à agricultura são as casas iniciais no tabuleiro da vinificação e, para muitos produtores, são o tabuleiro quase inteiro. Bem antes da fruta ser vindimada, existe a escolha do terreno, do jeito com que se ara ou não o solo, da orientação para as fiadas, do distanciamento entre cada pé, das ervas que se permite ou não crescer entre eles, da altura até a qual os orientamos a espichar. Depois, em cada ano, a cada ciclo, a leitura de seu comportamento conforme as chuvas, a poda feita a partir da seleção dos ramos que darão origem aos cachos e dos que cairão pro chão, os desenhos na distribuição de suas folhas, são alguns dos trabalhos que exigem plena presença de quem os executa. E exigem ainda um par de olhos extremamente observador e alguns dedos intensamente calejados.

C6H12O6  →  2C2H5OH + 2CO2 + 2ATP

6CO2 + 6H2O  →  C6H12O6 + 6O2

Mesmo quem nunca foi fã de química, com um pouco de raciocínio, descobre qual dessas fórmulas é a fotossíntese e qual é a fermentação alcoólica. Dificilmente uma pessoa sentada à mesa de um restaurante perguntará ao Sommelier da casa quantas moléculas de ATP são produzidas na conversão do açúcar em álcool. Porém, também é verdade que conhecer a fundo esse processo e as consequências na taça quando ele é feito de maneira mais ou menos lenta, a temperaturas mais ou menos altas, com leveduras comerciais ou indígenas, é o que diferencia um bom Somm de um Somm primoroso. Uma parte imensa do que é a enologia é também química, de forma que quem está em contato com o vinho está também sempre em contato com as moléculas que o compõem. É a partir da “observação” desse mundo invisível que se descobre, por exemplo, os aromas, a estrutura de ácidos e a transformação dos taninos e da cor decorrente das interações moleculares que acontecem, com o passar dos anos, no universo que é o líquido engarrafado.

Aprender a analisar o vinho na taça com uma abordagem técnica, aprofundada, e às vezes conforme umas duas dezenas de parâmetros, acaba por ser também uma exploração sensorial bastante rica. Nós temos dezenas de milhares de receptores na nossa cavidade retronasal, além de uma capacidade olfativa análoga à necessidade de discernir alimentos tóxicos de nutritivos, de identificar odores suspeitos e outros que, milênios atrás, podiam significar o alimento da semana. Nós evoluímos, enquanto espécie, para usar o nariz como ferramenta de caça, de salvaguarda. Não passou tempo suficiente para que a nossa fisiologia mudasse nesse sentido, mas aconteceu de desenharmos sociedades cujo estilo de vida não depende mais tanto do olfato, e assim ele não costuma ser treinado. Mas não é porque a nossa capacidade de sentir e descrever aromas é adormecida, que ela não pode ser despertada. Isso é mais latente no olfato, mas o mesmo serve para outros sentidos, e o uso que alguns profissionais fazem deles como única ferramenta de descoberta da casta, da região, do ano de colheita e até do vinhedo que se manifestam numa taça, é prova da importância do trabalho que se faz com a sensorialidade no vinho.

O vinho tem álcool, que é uma substância intoxicante. Na Grécia e Roma antigas, os rituais pagãos eram celebrados com cultos a Dionísio e Baco, que muitas vezes eram tão intensos em suas comunicações com o divino, que terminavam em bacanais (vem daí a palavra). Curiosamente, não eram apenas celebrações pagãs que reconheciam no álcool o seu poder indutor de estados alterados de consciência. Também os protocolos oficiais e politicamente aprovados de entrar em contato com a espiritualidade, como a liturgia católica, consagravam e ainda hoje consagram o vinho não só como via de acesso, mas como a própria substância a correr nas veias daquela que, na cosmovisão de muitos, é a máxima e absoluta representação da sacralidade: Deus. Seguro dizer que existe um consenso em relação ao poder do vinho como veículo para o etéreo e o celestial.

Mas há algo para além disso. A suspensão do foco no mundano para que tome lugar o estudo das humanidades e geografias do vinho, a desaceleração necessária para a boa interpretação dos ciclos naturais de uma planta e seus arredores, o estudo das interações invisíveis dentro de um líquido e da forma com que elas tocam nossos sentidos, no limite também cabem nas definições possíveis e subjetivas de espiritualidade. Quando voltamos à possibilidade de fazer essa investigação no próprio cenário onde a matéria-prima vira a coisa, estão dadas as cartas. Está dado o ar fresco, os verdes, as rochas e o horizonte existindo, e o abrilhantamento do espírito que vem com cada gole. Está dada a consciência de que, no vinho, jaz um potente precursor da conexão com outras múltiplas dimensões da existência.

Obs: isto é também uma carta de amor.

Assinatura Lana Ruff Vinhos Única

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Nesse texto o Pablo Fernandes vai nos ajudar a explorar as interações sensoriais entre receptores gustativos e acidez no vinho.