Em defesa da Moscatel
Você sabia que a uva daquele espumante doce e abundante na prateleira do supermercado chamado Moscatel tem uma das histórias mais ricas e antigas do mundo do vinho? Pois é. Não é só mais um vinho espumante barato, não é só mais uma uva. Na verdade, faz parte de um grupo de uvas. Epa, como assim? Grupo? Vou te explicar então.
A família de uvas Moscatel
Os vinhos feitos de uvas Moscatel são presença constante na história da bebida e, nos últimos tempos, seus produtores vêm se beneficiando da tendência de vinhos rotulados como Moscato. E assim vale convencionar o seguinte: Moscatel e Moscato significam a mesma coisa, ok? São nada mais que nomes diferentes para batizar uma família de uvas que têm certo parentesco entre si e a mesma origem genética, mas que ao mesmo tempo não são uma coisa só.
Assim, dependendo do lugar, temos diferentes nomes usados para batizar essa família: Moscato (na Itália), Muscat (na França e em países anglo-saxões) e Moscatel (Portugal e Espanha). O que é comum entre as diferentes castas é a “mãe” de todas elas: Moscato Bianco, que dependendo do lugar na Itália é chamada de Moscato d’Asti, ou ainda Muscat Blanc à Petit Grains, na França.
De acordo com pesquisas recentes, existem mais de 200 variedades de “moscatéis” entre uvas brancas e tintas (!), sendo que todas elas compartilham alguns aromas e sabores bem característicos. Mas vamos antes olhar um pouco pro seu passado.
História e origem dos vinhos Moscatel
Do ponto de vista histórico, a maioria dos estudiosos concorda que a família Moscatel é conhecida e apreciada desde a Antiguidade. Também está entre as castas com registros mais antigos já encontrados. A primeira menção conhecida de seu nome data de 1240 a.C. e está em um escrito de Angelicus que fala sobre “vinho extraído de uvas Moscatel”.
Os gregos já a conheciam como “Anathelicon moschaton”. Na Odisseia de Homero, foi descrita como um “vinho com sabor de mel”. Os romanos chamavam-nas “Apianae”, porque eram tão doces, que atraíam abelhas (Apia).
Na Idade Média, na onda do sucesso dos vinhos feitos com a família de uvas Malvasia (que é uma história pra outro dia, a dos vinhos navegáveis), os vinhos de Moscatel também passaram por um período de grande expansão e popularidade. Eram chamados vinhos Mediterrâneos – já que vinham da Grécia e da Itália –, pois o sol sempre estava presente nos vinhedos.
Nessa mesma época, nas cortes reais dos grandes impérios da Europa Central, os vinhos doces e aromáticos de Moscato eram a grande estrela dos banquetes à mesa. Dotados de cores, perfumes e sabores doces e sedutores, eles impressionavam tanto por sua riqueza aromática, como também pelo fato de sua origem ser de um lugar distante. É a velha história do produto que é um símbolo do status, riqueza e exclusividade: este vinho atravessou a Europa por mar e por terra até chegar às casas de reis e aristocratas. Um artigo de luxo.
O nome do perfume
Como falado antes, o nome Moscato batiza, em várias línguas, mais de duzentas variedades de uvas viníferas e de mesa, tanto brancas como tintas unidas pelo sabor Moscato. Devido a diferenças marcantes entre elas, a história da origem da Moscato sempre foi um enigma curioso. A primeira pista para entender a origem dessas variedades pode vir de uma análise de seu nome.
Quando madura demais, a casca da Moscato começa a rachar, liberando um néctar irresistível para os insetos: por muito tempo, foi uma opinião comum – e em parte, ainda é hoje – que o nome “Moscato” (de “Mosca”) vem justamente dessa característica. Porém, isso não é verdade! “Moscato” significa odor perfumado. A origem do nome vem das palavras para “almíscar” em sânscrito e persa, que expressam algo aromático (mais precisamente “muáká”). Esta pista, que enriquece a origem das vinhas e dos vinhos que delas derivam, limita a sua origem aos territórios onde se falavam esses idiomas, notadamente as áreas do Oriente Médio entre a Síria e a Pérsia (atual Irã) ao sul, fechadas a norte pelas montanhas do Cáucaso e limitado lateralmente pelo Mar Negro e pelo Mar Cáspio. Um nome perfeitamente adequado para esta uva, dotada de um aroma tão intenso.
Elas produzem moléculas responsáveis por um aroma característico que evolui no vinho, chamadas terpenos. Aliás, uma breve curiosidade: na viticultura, uma primeira classificação pode ser feita entre videiras aromáticas e não aromáticas, precisamente com base na capacidade da planta de sintetizar moléculas de terpeno na casca: portanto, todas as variedades que possuem “engrenagem genética” ativa e produtiva para as sínteses destes compostos são definidas como “aromáticas”, e as “não aromáticas” são todas aquelas em que esta parte do metabolismo permanece adormecido. A família Moscato ocupa posição de destaque nas variedades aromáticas.
Os vinhos de Moscatel tem várias facetas: podem ser espumantes, que geralmente tentam reproduzir o refrescante italiano Asti Spumante (usualmente com baixo teor alcoólico, doce e com muitas borbulhas), como muitos Moscatéis brasileiros espumantes, feitos também com o método Asti de vinificação; podem ainda ser tranquilos secos, como o Muscat d’Alsace, ou, finalmente, fortificados e de sobremesa, como o Moscatel de Setúbal, bastante popular no Brasil – e que vai muito bem com um pudim de leite, viu?
Moscato Bianco
Primeiro falamos da Moscato Bianco, também conhecida como Muscat Blanc à Petits Grains, que é a mais difundida não apenas na Itália e França, mas também em todo o Mediterrâneo. É encontrada com diversos nomes: além de Muscat Blanc à Petit Grains e Moscato Bianco, vemos ainda Muscat de Frontignan, Moscatel de Grano Menudo, Moscatel de Grano Pequeño (Espanha), Moscatel Branco, Moscatel do Douro, Moscatel Galego (Portugal), Moschato Lefko, Moschato Samou (Grécia), Muskateller (Áustria e Alemanha), Frontignan (Austrália) e Moscatel (África do Sul).
É uma vinha de amadurecimento tardio, suscetível a danos de geada em climas mais frios, mas também super adaptável a lugares mais quentes (olha a versatilidade dela já no vinhedo).
Na taça, é o mais floral de todos os Moscatos, com aromas de rosas acompanhados por uma verdadeira salada de frutas com pêssego, abacaxi, mel e damasco, muitas vezes contrastada por especiarias como sálvia e tomilho. No visual é um amarelo-palha claro, de acidez baixa a média (dependendo do clima), corpo delicado e muito perfumado, com o típico aroma “Moscato” – que remete a… uva! (sim, finalmente um vinho com cheiro de uva, caro leitor!)
Moscato di Alessandria
Agora falemos da outra Moscato bastante vista por aí: Moscato di Alessandria, outra uva de muitos pseudônimos. Ela é muito associada à ilha de Pantelleria, na Sicília, onde faz um dos grandes vinhos doces italianos. Conhecida ali como Zibibbo, a Moscatel de Alexandria sugere em seu nome local que tenha sido introduzida na região pelos árabes, que vieram de Capo Zebib, uma cidade tunisina em frente à Pantelleria. Contudo, seu cultivo na ilha passou a ser considerável apenas a partir do início do século XX. Além de ser encontrada como Zibibbo, ela também é chamada de Moscatel Gordo ou Moscatel de Setúbal (não o Roxo, que é ainda outra Moscatel distinta).
A Moscato di Alessandria é filha da Moscato Bianco com outra variedade de origem grega chamada Eptakilo. A Zibibbo, na verdade, é de origem egípcia e, devido à sua tolerância ao calor, é encontrada não apenas nas regiões mais quentes do Mediterrâneo, como também no Novo Mundo (na Austrália em particular, mas no nosso Brasilzão também).
É utilizada em muitos destes locais para a produção de vinhos doces, com destaque para a produção a partir de uvas secas afetadas por Botrytis (fungo conhecido como podridão nobre), que conferem aos vinhos aromas clássicos de marmelada e damascos secos. Na Itália, no entanto, particularmente na Sicília, houve um aumento na produção e popularidade dos vinhos secos desta uva, de perfil fresco e levemente aromático, que combinam perfeitamente com os pratos agridoces encontrados por lá.
Poderíamos ir muito longe falando de outras descendentes famosas e seus vinhos: Moscato Giallo, Aleático, Brachetto D’Acqui, Malvasia Odoríssima, Torrontés, Listán Prieto (uma das primeiras uvas “missioneras” a vir pra América do Sul na época colonial), Cereza… são muitas. Mas voltemos à Moscato Branco para falar um pouco agora de Brasil.
O Brasil e a Moscato Branco
Há uma série de variedades de uvas da família Moscatel plantadas no Brasil, mas a Moscato Branco (também chamada apenas de Moscatel) é a mais reverenciada. Aliás, uma curiosidade: de acordo com uma pesquisa conduzida pela Embrapa, a uva Moscato Branco é considerada geneticamente única, só encontrada no Brasil. Isso porque este “clone” dela se adaptou às características climáticas do nosso país e agora só é encontrada aqui. Dito isso, a Moscato Branco é uma das preferidas para elaboração do vinho doce e do popular espumante brasileiro Moscatel.
Mais da metade das plantações desse Moscato Branco brazuca está em Farroupilha, na Serra Gaúcha. Também é sabido que esses vinhedos estão desde a década de 1930 por lá. A propósito, Farroupilha é uma Indicação de Procedência nacional (IP Farroupilha) exclusiva para vinhos Moscatéis (e não só espumantes, ok?). Alguns dos melhores Moscatéis espumantes que você pode encontrar são de lá (os meus favoritos são as versões um pouco mais secas dele).
Aliás, falando em versões favoritas, há vários moscatéis muito legais no mercado brasileiro. Pra citar alguns produtores: Casa Perini, Garibaldi, Cave Antiga, Aurora e, claro, a Miolo com o seu belíssimo nordestino Terranova Moscatel. E vou mencionar um de que eu gosto muito de um micro produtor: Moscatel Terrazzo Manfroi, de São José, Santa Catarina (@terrazzomanfroi). Elisson manda muito bem!
CONCLUSÃO (depois de tuuuudo isso)
Deu pra ver que a história da Moscatel é riquíssima, não é? Pois é. E tenho certeza que você, depois de ler esse texto, vai passar a reagir como eu quando falam de vinho Moscatel: “mas de que Moscatel ou Moscato estamos falando?” Sim, isso me persegue sempre que olho um rótulo de Moscatel. E pode ser que nunca encontremos a resposta certa, mas isso nem interessa muito no final. Desencane. Não tenha preconceito com ele. Beba!
Moscatel é a essência de um vinho genuinamente brasileiro: divertido, informal, leve, doce e saboroso. Popular. Preço acessível. Fácil de se relacionar. Democrático. Que mais gente entre pro mundo do vinho começando com ele. Saúde!