O Lado Invisível do Terroir, Parte II: Desvendando os Mistérios Microbianos
Olá pessoal! Na primeira parte desta coluna, exploramos o lado oculto do terroir, revelando como os microbiomas – esses universos invisíveis de microrganismos como leveduras, bactérias e fungos – desempenham um papel fundamental na formação dos sabores e aromas dos nossos vinhos prediletos. Descobrimos que, além do solo, clima e técnicas de vinificação, existe um intricado mundo microbiano que influencia significativamente a identidade e complexidade de cada vinho.
Nesta continuação, vamos ver as descobertas e as implicações práticas desses achados no mundo da vitivinicultura. Este mês focaremos nos trabalhos pioneiros de Ignacio Belda, da Universidade Complutense de Madrid, para examinar como o entendimento avançado dos microbiomas pode transformar as práticas de vinificação e talvez até redefinir nosso conceito de terroir.
Estes conceitos foram divulgados na palestra “Next frontiers in wine research and beyond” dada no Simpósio Masters of Wine, na Alemanha, em Julho de 2023. Você pode encontrá-la na íntegra aqui.
Belda destaca uma mudança significativa em seu campo que está permitindo o atual avanço: a acessibilidade do sequenciamento de DNA. Essa tecnologia, outrora proibitivamente cara, agora permite análises detalhadas e abrangentes das comunidades microbianas em vários ambientes, incluindo vinhedos. O impacto dessa democratização é profundo, permitindo a Belda e sua equipe examinar os microbiomas dos solos de vinhedos em uma escala global.
Entendendo a Conexão Microbioma-Terroir
A pesquisa de Ignacio Belda foca na interação entre o microbioma e o terroir, uma área que até recentemente permanecia largamente inexplorada.
Embora seja claro que o solo desempenha um papel fundamental na determinação das características de um vinho (e que fará parte de uma nova série aqui nesse espaço na Única), Belda e sua equipe estudam como os microrganismos específicos dentro do solo contribuem para essa equação.
E um dos desafios enfrentados por Belda para esse entendimento é a complexidade das variáveis inerente aos ecossistemas microbianos. Cada vinhedo tem uma composição única de solo, clima e práticas de manejo, todos os quais afetam a comunidade microbiana presente. Além disso, uma das grandes perguntas reside em entender até que ponto esses micróbios passam das raízes das videiras para as uvas e, eventualmente, para o vinho.
Ele reconhece que, embora tenhamos avançado em nosso entendimento isolado dos microbiomas do solo e das uvas, ainda há um caminho a ser percorrido para conectar definitivamente estes elementos ao estilo e qualidade final do vinho. A hipótese é que, assim como o clima e o solo influenciam o terroir, os micróbios do solo podem ser igualmente influentes.
Microbioma central: um conceito global
Uma das revelações da pesquisa de Belda é a identificação do “microbioma central”, que nada mais é que uma coleção de microrganismos – bactérias, fungos e leveduras – consistentemente encontrados em vinhedos ao redor do mundo. Este estudo incluiu amostras de solo de 14 países diferentes, cobrindo cinco continentes. Ao analisar cerca de 250 parcelas de vinhedos, ele foi capaz de discernir um padrão microbiano comum a todos, uma espécie de assinatura microbiológica global comum a todos esses vinhedos.
Este conceito de um microbioma central global tem implicações significativas para o entendimento do terroir. Tradicionalmente visto como um conjunto de características geológicas e climáticas únicas de uma região específica, o terroir pode agora ser considerado também sob a perspectiva de uma base microbiana comum. Isso não diminui a importância das características locais, mas adiciona uma nova camada de complexidade à noção de terroir.
O conceito de microbioma central abre novas possibilidades. Por exemplo, poderia ser possível manipular ou enriquecer os microbiomas dos vinhedos de maneira a maximizar a expressão desse microbioma central, potencializando certos atributos desejados no vinho. No mais, esse conhecimento pode levar a práticas agrícolas mais sustentáveis e eficazes, ajustadas para manter ou até mesmo enriquecer a biodiversidade microbiana no solo.
Mas Belda segue com sua curiosidade particular sobre como os microbiomas do solo se traduzem no vinho, uma vez que a interação entre o restante das parcelas “diferentes” ainda é um mistério – e é aqui que estaria a chave de sua resolução. Também é importante não esquecer que os outros papéis desempenhados pelas leveduras, que vão além de transformar açúcar em álcool, também têm um papel fundamental na caracterização de cada terroir.
Leveduras: mais do que simples conversores de açúcar em álcool
Belda revela um novo entendimento sobre as leveduras em suas pesquisas, mostrando que elas não são meras “fábricas de etanol”, mas organismos com uma diversidade metabólica surpreendente. Ele menciona várias espécies que vão além da Saccharomyces, conhecida por sua eficiência na fermentação de açúcares.
Por exemplo, algumas leveduras são capazes de produzir ácido láctico a partir de açúcares (diferente das bactérias, que produzem ácido láctico a partir de ácido málico na conversão malolática). Algumas outras podem consumir ácido málico ou ácido succínico, e outras ainda podem melhorar ou aumentar compostos voláteis específicos, como tióis polifuncionais, que são extremamente importantes para vinhos brancos.
Essas descobertas sobre a diversidade metabólica das leveduras têm implicações diretas nas características sensoriais do vinho. Por exemplo, a presença do gene YRC7 em algumas leveduras está associada à produção de compostos que conferem aroma de buxo (boxwood), comum em Sauvignon Blanc, por exemplo.
Belda também aborda a importância das leveduras na fermentação espontânea, um processo valorizado por muitos enólogos e enólogas por sua capacidade de trazer complexidade e profundidade ao produto final. As leveduras naturalmente presentes nas uvas e no ambiente do vinhedo e da cantina interagem de maneiras complexas durante a fermentação, influenciando o perfil final do vinho de maneira que ainda estamos começando a entender.
Uma possibilidade é a de explorar a “caixa de ferramentas” metabólica das leveduras para inovações futuras na vinificação. Com o avanço da biotecnologia, poderíamos ver a seleção ou modificação de leveduras para realçar características específicas nos vinhos, abrindo novas possibilidades para a criação de produtos com perfis sensoriais distintos. No limite pode-se até pensar em usar genes de outras espécies para a criação de leveduras sintéticas.
A era das leveduras sintéticas
Outras discussões no Simpósio do Instituto Masters of Wine apontaram para um futuro empolgante na vinificação: a era das leveduras sintéticas e o uso de tecnologias avançadas como CRISPR. Essas inovações prometem revolucionar a forma como entendemos e utilizamos esses micro-organismos na produção de vinho.
Um avanço assim na biotecnologia permite que os cientistas não apenas modifiquem as leveduras existentes, mas também criem novas cepas com características desejadas. Esta abordagem poderia levar a uma fermentação mais eficiente, com controle mais preciso sobre os sabores e aromas do vinho.
CRISPR, uma técnica de edição genética que permite mudar parte do código genético de uma célula, é uma das ferramentas mais promissoras nessa nova fronteira. Diferente da engenharia genética tradicional, que muitas vezes envolve a transferência de genes entre espécies, a edição CRISPR permite ajustes precisos no próprio DNA das leveduras.
A capacidade de desenhar leveduras sintéticas significa que os enólogos poderiam ter ao seu dispor cepas personalizadas que permitem, por exemplo, enfatizar sabores frutados ou reduzir o teor alcoólico final.
Enquanto as oportunidades são vastas, também surgem desafios e considerações éticas. A aceitação de leveduras sintéticas e geneticamente editadas por consumidores e reguladores permanece uma questão aberta. Além disso, há debates sobre a preservação da tradição na vinificação versus a adoção de novas tecnologias.
Conclusão: A profunda influência do invisível
A pesquisa de Belda e outros cientistas nos aproxima de uma compreensão mais completa do lado invisível do terroir, de como uma população complexa de leveduras, bactérias e outros micróbios influencia o vinho desde a vinha até nosso paladar. Talvez, no futuro, possamos manipular tudo isso ainda mais a nosso favor.
Enquanto isso, parece claro que os produtores de vinho precisam trabalhar para entender, proteger e preservar seus microbiomas da vinha e da vinícola tanto quanto possível. E nós, apreciadores de vinho, devemos reconhecer e valorizar esse lado invisível da bebida. Brindemos, então, à complexidade escondida em cada taça!