O que eu aprendi com o vinho
É difícil lembrar de abrir mão da lente teleobjetiva na vida, a lente com zoom. É graças a ela que nos planejamos para abastecer a geladeira pra semana, ou que conseguimos estar realmente presentes em conversas difíceis. É graças a ela também que somos capazes de ignorar grandes questionamentos existenciais e assim seguir numa só rota, ao infinito e além. Mas quando lembramos de vestir a grande-angular, a lente do zoom-out, essa rota passa a caber inteira numa paisagem ao alcance dos olhos: começo, meios e possíveis fins. E aí de repente os detalhes que num dia parecem importantes, no outro são pixels pequenos demais pra fazer diferença no enquadramento.
Eu tive um momento grande de troca de lente há alguns meses. Coloquei a grande-angular, e o que ela me mostrou foi um playground. Yep. E de repente eu me dei conta de que eu estava fazia um tempão no mesmo balanço não porque eu ainda me empolgava, mas porque era o brinquedo que eu sabia usar. Tomei coragem e admiti isso pra mim. E assim eu entendi que eu não quero mais brincar de vinho. Pelo menos pra já. Vou brincar de outras coisas na vida.
Para fazer espaço pra elas, deixo aqui minha última colaboração regular com a Única como colunista. Partilho nela as pequenas e singelas pérolas de aprendizado que coletei nesses 13 anos – que não são muito, mas são quase toda a minha vida adulta. A Jessica, idealizadora desse projeto incrível, e toda a equipe braba de arte e colunistas, continuam povoando o meu coração, assim como uma tacinha bem escolhida de vez em quando, sem pretensão ou obrigação.
O que eu aprendi trabalhando com vinho
que alcoolismo ainda é tabu
Supera o número de definições de “mineralidade” quantas vezes fui recriminada em eventos por dizer que já estava só na água. Isso pra não falar do número de vezes em que vi winemakers bêbados e bêbadas. Quem está na indústria está altamente exposto aos efeitos do álcool, e não só não se fala dos perigos dessa exposição, como muitas vezes pega mal abordar o tema. Eu adoraria ver que nos próximos anos vamos ter a capacidade de reconhecer a pressão social para continuar bebendo em eventos horas afora, e de falar sobre a dependência que se cria do álcool quando, por motivos profissionais, é preciso pô-lo na boca com tanta frequência.
que ignorância é benção
Isso vale para qualquer coisa que se veja numa prateleira de supermercado, mas sendo o nosso filão aqui o vinho, falemos só dele. Se a gente soubesse a obscenidade de água que é necessária para produzir uma garrafa de vinho, só pra começar, eu penso que nossos padrões de consumo seriam bem diferentes. Isso pra não falar da poluição das águas, do empobrecimento dos solos, do desperdício, da pegada de carbono, do aprofundamento das desigualdades nas zonas rurais. Ninguém consegue ser feliz sem fechar os olhos de vez em quando para as mazelas do mundo, mas também convém abrir de vez em quando e buscar formas de ser construtivo a respeito.
que se romantiza a indústria do vinho e não é pouco não
Quem na vida já organizou uma degustação e no final teve que esvaziar um cuspidor sabe do que eu estou falando.
que apreciação sensorial é como um músculo que se trabalha
Em 2014 a maior revista científica do mundo publicou um estudo retificando a estimativa do número de aromas que o nariz humano é capaz de reconhecer. Afinal não são 10 mil, mas 1 trilhão. Nós evoluímos para sermos capazes de distinguir ervas e frutas nutritivas de venenosas, e também para detectarmos a proximidade de uma possível presa. Foi-se o tempo em que precisávamos de uma capacidade olfativa poderosa para termos melhores chances de sobrevivência, é verdade. Nosso estilo de vida atual dispensa essa capacidade, mas a maquininha poderosa na nossa cavidade retronasal está prontinha para ser desenferrujada e começar a trabalhar com muito mais afinco e versatilidade do que o uso que lhe damos. Paciência, prática e bons professores ou colegas igualmente comprometidos fazem milagres no desenvolvimento do nosso olfato.
que fazer vinho é um ótimo jeito de empobrecer
Uma amiga outro dia me contou que o dono da vinícola onde ela trabalha ficou milionário quando começou o projeto. Antes ele era bilionário. É caro fazer vinho, é difícil agregar valor, é pouco ideal escalar demais a produção. E é por essas e outras que tantos produtores passaram a investir no enoturismo e agora têm outra fonte de renda.
que o vinho é uma espécie de Babel
Seja tenente ou filho de pescador, ou importante desembargador (pra citar Elba Ramalho), vem gente de todo lado. Neste texto nós falamos como a indústria do vinho é um antro de expatriados de outras carreiras, e de como o enoturismo, em particular, é promissor no Brasil. De gente que veio de outras vidas para se profissionalizar no vinho, já vi advogados, engenheiros eletrônicos e médicos, os clássicos. Mas também conheço ex-pizzaiolo, ex-radialista e até ex-ciclista profissional.
que a convivialidade é minha parte favorita
Na laje, no chão da sala, na praça vendo o pôr-do-sol, na sala de aula, na taverninha portuguesa, na cozinha enquanto se cozinha, no restaurante hype, no sofá com Netflix, à mesa na casa da vó ou onde for, o vinho traz algo a mais. É como se ele criasse um pacto implícito pelo convívio, pelo reconhecimento da coletividade que está ali, mesmo que sejamos duas ou três pessoas. É um tipo de ênfase nessa conexão temporária, e obviamente um solvente natural de muitos dos filtros que atravancam esse convívio. “Lubrificante social”, alguns diriam.
que visitar produtores locais é um bom jeito de se integrar à região
Aqui, aqui, aqui e mais num tanto de outros textos nós debulhamos alguns dos impactos de abrir mão da fila no Arco do Triunfo para escolher ativamente colocar o corpo – e a carteira – numa zona rural. Conhecer o lugar de origem de qualquer mercadoria é um esforço importante no contexto de crise climática em que vivemos, e o vinho é algo que tem particularmente uma conexão muito profunda com a sua terra. Aprender sobre determinado vinho é aprender história, biologia, geologia, química, antropologia e espiritualidade. Quem aprende conhece, e quem conhece cuida.
que a conscientização é revolucionária
Bebamos em convivialidade e brindemos aos motivos que ainda temos para brindar, que não são poucos. Mas que reconhecer esses motivos seja também o caminho para tomarmos consciência de que cada compra implica num posicionamento, e de que cada decisão traz em si a possibilidade de salvaguardar um pouquinho os solos que nos dão presentes como as frutas.
que o prazer é revolucionário
Tanto é que a proibição de atos e eventos que levam a ele é um clássico em governos totalitários. Há algo no prazer que nos conecta com uma dimensão transcendental da vida. O vinho é justamente a conexão do profano com o sagrado, e por isso tem no semi-deus Dionísio sua representação – o deus da loucura, do absurdo, dos bacanais. A consciência de que esse nível de experiência existe, a experiência que nos transporta por um momento da qualidade humana para a qualidade divina, é o que vai nos lembrar de proteger as frutas. E além das frutas, também as vistas, a vida e todas as nossas fontes de prazer.