O saber do vinho está no líquido ou em você? Pablo Fernandez

O sabor do vinho está no líquido ou em você?

Os sentidos e a percepção multissensorial: por que as nossas sensações são resultado de um processo complexo de percepção –  e por que isso é uma coisa boa para você que está começando a aprender sobre vinhos.

Talvez você esteja assim agora: “Nossa, que título esquisito. Como assim o sabor está ‘em mim’? Bebeu?”

Sim, amigos leitores. Bebi. Quer dizer, quase todos nós bebemos de vez em quando, não é? Mas você DEGUSTOU o vinho? Notou os aromas e sabores? “Ah, isso é quase impossível de aprender”, diria o iniciante, levemente frustrado. Eu já pensei isso. E você já deve ter estado perto de desistir também.

Pois então, caro amigo leitor, resolvi dedicar esta coluna a esse assunto. Não que o texto a seguir pretenda ensiná-lo a degustar (sim, seria ambicioso e improvável), mas gostaria de dividir com você algumas curiosidades que descobri nesses anos de estudo com o intuito de reduzir a minha ansiedade em aprender sobre degustação. Eu sei que isso é algo que deixa vários estudantes de vinho um pouco tímidos.

Então falemos de uma área dos estudos que me fascina há algum tempo: o estudo da percepção multissensorial na neurociência. Esse campo de estudos tenta explicar cientificamente como funcionam nossas percepções sensoriais. Aviso: nosso objetivo aqui não é um artigo pra ser publicado na Science ou na The Lance, ok?

Todos sabemos que o vinho é uma bebida maravilhosa e complexa. Complexa? Sim. Complexa por ter muitas moléculas de aromas. Segundo Jean Lenoir, em seu livro Le Nez du Vin, já foram identificadas mais de mil moléculas de aromas em vinhos, e provavelmente ainda há muito a descobrir. E certamente essa é uma das razões que torna o vinho uma bebida fascinante: é um grande estimulante dos nossos sistemas sensoriais.

E o que as moléculas de aromas têm a ver com nossos sentidos?

Na verdade, tudo começa com um casamento entre estímulos (moléculas do vinho, por exemplo), receptores que temos em nosso corpo (por exemplo, as papilas gustativas), transmissão (neurônios) e processamento (cérebro). Sem esse casamento poligâmico, não existe o processo de sentir a experiência do vinho, de construir em nós uma determinada realidade a ser percebida. Como exemplo antagônico, os gatinhos não têm receptores do gosto doce em suas papilas, então eles são incapazes de identificar algo açucarado. E lembre-se, tecnicamente o doce não existe.

Mas vamos voltar mais um pouco. O “mundo real” (o ambiente) é formado por fenômenos físicos (ondas, radiações, por exemplo) e químicos (moléculas). Nós, humanos, temos algumas ferramentas dentro do nosso corpo que permitem detectar parte desses fenômenos. Logo, o que sentimos e percebemos definitivamente não é tudo que está acontecendo no mundo real. É um resumão elaborado pelo nosso cérebro pra facilitar nosso entendimento do nosso entorno.

A gente possui alguns tipos de receptores que são ativados por certos estímulos. São eles: receptores visuais (o olho, com a retina), de audição (o ouvido, com a cóclea) o tato ou somatossensorial (com a derme, que também está na mucosa da boca), o paladar (com a língua, papilas gustativas) e o olfativo (nariz e epitélio olfativo). Esses receptores, após um estímulo, transmitem via neurônios um impulso nervoso/elétrico até o cérebro, onde ele será processado e resultará em uma percepção. Ou seja: as coisas do nosso ambiente não têm cor, cheiro ou gosto. Como falei antes, aquele doce não existe na natureza. O que existem são moléculas. E elas precisam do nosso receptor pra serem percebidas assim. Tudo é uma percepção criada pelo nosso cérebro a partir desse estímulo.

Por exemplo, uma determinada faixa de ondas captada pelos nossos olhos/sistema visual estimula esses receptores, que por sua vez vão pro cérebro, onde ela vai ser processada e transformada numa percepção de uma cor – por exemplo, a cor rubi de um vinho tinto.

Uma palavrinha sobre os nossos cinco sentidos

Como falamos antes, temos outros receptores além do visual. Estes ajudam a formar os cincos sentidos externos que nos levam a construir essa percepção:

  • Visão (cor, contraste, brilho)
  • Audição (tom, timbre)
  • Tato ou Somatossensorial (textura, temperatura, pressão, irritação)
  • Gustativo ou Paladar (gostos)
  • Olfato (odores e aromas)

Uma coisa já para levarmos em consideração: não temos SABOR nos nossos sentidos externos. Temos GOSTO. E isso é uma importante definição a ser levada em conta, por isso vamos a ela:

GOSTO é a percepção construída em nosso sistema gustativo, que, através de estímulo químico de moléculas nos receptores em nossa boca, nos faz perceber os gostos primários, que são doce, salgado, amargo, ácido (azedo) e umami.

Já o SABOR é definido como a construção em nosso cérebro da percepção integrada multissensorial dos estímulos (químicos e físicos) sentidos na boca. Estes, por sua vez, vão além dos gostos básicos: são também aqueles dos sistemas somatossensorial (pressão, picância, temperatura, textura, adstringência), olfativo (retronasal, que são aqueles aromas que sentimos dentro da boca expirando o ar) e gustativo (os cinco gostos primários). 

Ainda: o sabor também vai depender dos estímulos que ocorrem antes e fora da boca. Estes “fora da boca” são chamados de Sistema Modulador da Percepção do Sabor, que são a integração multissensorial dos estímulos que contribuem para a percepção do sabor. E isso é a partir da expectativa do que ainda não está em boca. Trocando em miúdos, seria a soma da visão, da audição e também do olfato. Estes causam em nós uma expectativa, dando uma sugestão ao nosso processador (o cérebro) de possíveis percepções de gosto, aromas, texturas. Aqui já entramos no perigoso campo dos vieses e interferências que impactam a percepção final.

Bom, fomos estimulados. Como falamos antes, nossos sistemas receptores sensoriais são conectados aos neurônios. E os neurônios, através de uma conversão do estímulo em impulso elétrico, vão levar informação até o cérebro e é lá que tudo se transforma em experiências e sensações. 

E então chegamos ao cérebro

Antes, só relembrando que córtice (ou córtex) é a camada ou casca que envolve toda a parte externa do cérebro. A famosa massa cinzenta. Todos os estímulos percebidos pelos receptores serão transportados pelos neurônios para os seus respectivos córtices sensoriais especializados. Logo, tudo que é do receptor visual será transportado para o córtex visual. Tudo o que é tato é encaminhado ao córtex somatossensorial. E assim sucessivamente. Listamos a seguir quais são os córtices sensoriais especializados que temos:

No entorno destas regiões especializadas, temos córtices integrativos, também chamados de córtex de associação. Esses serão responsáveis por pegar as informações que foram recebidas fragmentadas por cada um dos córtices sensoriais especializados para processar como uma coisa só. Por exemplo, o córtex de associação pode unir um estímulo visual, um olfativo e um gustativo (por exemplo, algo degustado numa taça de vinho). E essa informação vai subindo a hierarquia cortical, começando no processamento especializado até ser integrada no fim, com todos os fragmentos sendo unificados em uma região chamada Córtice Orbitofrontal, que é onde as experiências de sabores são finalmente percebidas pela gente. E aqui é que a coisa começa a ficar interessante, mas elaboramos melhor num próximo texto, ok?

Pra já, vamos falar sobre um experimento com ratos que vai nos ajudar a responder à pergunta inicial deste texto:

Afinal, o sabor do vinho está no líquido ou em você?

Em 2005, um experimento publicado na revista científica Nature chamado “The receptors and coding logic for bitter taste”, algo como “Os receptores e decifrando a lógica do gosto amargo” em tradução livre, tentou responder de onde vem a experiência gustativa da pessoa: do receptor periférico (na ligação do estímulo/molécula com o receptor), ou do processamento do córtex/cérebro, que seria central.

O experimento consistiu na criação de dois grupos de ratos geneticamente modificados. No primeiro, colocaram receptores humanos de amargor ligados às células de doçura. E no segundo grupo foram colocados receptores humanos de amargor junto às células de amargor.

Como estímulo, usou-se uma substância amarga. E foi se observando o quanto os ratos de ambos grupos gostavam ou não dela à medida que se aumentava a sua concentração. O que se percebeu foi que os ratos com o receptor amargo nas células amargas acabaram rejeitando cada vez mais essa substância, enquanto os ratos com o receptor do amargor ligado às células doces tiveram um aumento na preferência por ela. E por quê? Porque o receptor de amargor estava “ligado” ao circuito de percepção de doçura do cérebro do ratinho. Ele estava percebendo a substância amarga como se fosse doce!

Ou seja: foi comprovado que a experiência gustativa do rato era proporcionada pelo cérebro, e não pela substância estimulando o receptor. Em outras palavras:

Foi comprovado que a experiência sensorial está no cérebro.

Se a vivência da experiência, então, se dá na decodificação da informação transmitida pelos neurônios a partir dos receptores, o sabor do vinho estaria em nós?

Quem vai responder isso não sou eu, nem você, mas Gordon Shepherd, autor de um livro de que gosto muito, “Neuroenology”, ou “Neuroenologia”. Ele diz: “O gosto não está no vinho. O gosto é criado pelo cérebro do degustador do vinho.” Ele também sabiamente comenta: “Contudo, lembre-se que o gosto percebido pelo cérebro vai obrigatoriamente depender do que está no vinho que está na taça e que depois vai para a sua boca.”

O prazer e a experiência que temos do vinho não se limita ao que está na nossa boca: está além disso, está na memória, nas associações e nas nossas emoções. Em nossa biblioteca pessoal de cheiros e sabores. E não é definitiva!

Portanto, meu caro leitor, retorno à questão da frustração com a degustação. Você vai aprender. Insista. O sabor e o gosto do vinho estão dentro de você, porque tudo é um mapa provisório e resumido de um território complexo. E esse mapa pode ser melhorado e aprendido!

Numa próxima coluna, falaremos do sistema olfativo, que acho genial, brilhante, misterioso, um verdadeiro artista das sensações. E traremos também alguns conceitos que vão explicar melhor como nossa percepção sensorial pode ser enganada por estímulos externos.

E como um teaser do poder (ou da falta dele) do cérebro, deixo abaixo uma figura que ilustra exatamente o que quero dizer quando digo que nem tudo é o que parece – ou o que vemos não é o que aparece. As linhas da figura… estão tortas? 

Ilusão de ótica

E ah! Para este fim de ano, época das borbulhas, aí vai outra outra sugestão: experimente um espumante esfregando uma lixa na palma das mãos. Me diga o que aconteceu depois disso. Mande seu feedback pra @psfernandez no Instagram ou para o e-mail: psfernandez@gmail.com. E, se gostou do tema, siga dois brilhantes neurocientistas brasileiros que estudam percepção multissensorial e são referência nisso. A Fabiana inclusive leciona cursos online sobre o assunto.

  • Fabiana Carvalho – @thecoffeesensorium / thecoffeesensorium.com
  • Heber Rodrigues – @hebermayca

E algumas sugestões de livros e leituras sobre o tema em português:

  • Degustação de vinhos: Rigor e Paixão – José Luiz Borges

E em inglês:

  • Neuroenology – Gordon M. Shepherd
  • I taste red – Jamie Goode
  • Gastrophysics – Charles Spence

Até a próxima!

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