E afinal, quais são os princípios da harmonização?
Com frequência eu percebo o seguinte: por mais que nossas falas nos direcionem para um discurso de popularização do vinho e de todos os aspectos que o permeiam, há momentos em que nossa abordagem subentende um conhecimento por parte de quem lê. Esse conhecimento possivelmente pode não existir, afinal quantos dos leitores aqui iniciaram as leituras justamente para compreender o apaixonante universo dos vinhos?
No que diz respeito a harmonizações, desde que nossos primeiros textos foram postados, já fomos direto ao assunto. Combinamos vinhos brasileiros com pratos emblemáticos do sertão nordestino, promovemos o belo casamento de vinhos laranja com moqueca baiana e foi possível ainda compreendermos quais os princípios básicos do uso de vinhos na culinária.
Então me dei conta de que precisávamos retomar alguns bons passos e fazermos perguntas mais básicas: afinal, quais são os princípios da harmonização?
Vocês devem ter lido ou ouvido a regra básica de que vinhos leves sempre harmonizarão com pratos leves, e vinhos encorpados sempre serão pares perfeitos para receitas mais “pesadas”. A outra clássica é que vinhos brancos servirão para carnes brancas, e tintos, para carnes vermelhas. Simples assim! Será mesmo? Certamente que não. E este é exatamente o ponto de partida que nos permite iniciar essa saudável discussão.
Vejamos: um prato contém uma vasta riqueza de ingredientes que são manipulados com diferentes métodos de cozimento e que, por consequência, vão gerar texturas, sabores e aromas diferentes. Pensar em um vinho apenas por sua cor, sem que se atenha também à sua rica intensidade de características organolépticas também não seria em nada justo. É claro que não há aqui, de forma alguma, uma fiscal da harmonização de vinho e comida. Harmonização boa, antes de tudo, precisa ser aquela que vai agradar ao seu paladar pessoal. O ponto aqui é que, para tal, existem questões que tornarão mais fácil compreender o que fará desse casamento mais agradável, ou até perfeito!
O que levamos como premissa essencial na harmonização é que, entre comida e vinho, um não pode competir com o outro, mas ambos precisam ser complementares. Duas formas de pensar costumam facilitar a vida dos iniciantes:
– por semelhança: os elementos da comida podem vir a se assemelhar com os elementos do vinho. Vinhos doces, por exemplo, tendem a ser interessantes em algumas sobremesas, pois se parecem em seu dulçor.
– contraste: elementos do vinho podem amenizar características da comida por seu contraste, vindo a complementar e a gerar equilíbrio na composição. Pratos em que se perceba uma gordura mais expressiva podem ser acompanhados de vinhos de alta acidez, por exemplo.
A acidez, aliás, costuma ser um ponto importantíssimo nos vinhos no que diz respeito à harmonização com refeições. Vinhos de baixa acidez não estimulam o paladar e, na boca, junto à comida, acabam sendo mais difíceis de combinar. Não quer dizer que seja impossível uma harmonização aqui, mas se a bebida tiver menor acidez que o prato, ela pode acabar desaparecendo.
E os ingredientes impossíveis de harmonizar, existem?
Fala-se muito sobre alguns ingredientes e/ou comidas que seriam, teoricamente, impossíveis de harmonizar com vinhos. Eu não gosto do termo “impossível”, pois as possibilidades no mundo dos vinhos têm sido renovadas dia após dia. Há quem acredite em harmonizações viáveis com os próximos itens, que prefiro chamar de “difíceis” de harmonizar:
– aspargos e alcachofra: são vegetais que costumam dar a sensação de um sabor metálico na boca. Isso acontece porque ambos possuem uma substância de ação antioxidante em sua composição chamada cinarina. Consumidos individualmente, é quase que impossível harmonizá-los, mas quando incorporados em um bom risoto, por exemplo, o sabor torna-se completamente diferente – e é assessorado por ingredientes amigos da harmonização, como sal e queijo.
– picles: são alimentos com acidez excessiva que quebram o equilíbrio dos componentes de dulçor e acidez que o vinho tem, o que acaba por gerar uma grande confusão no paladar. Nestes casos, o ideal é não servir o picles sem que haja outros acompanhamentos que permitam reduzir o nível de acidez intenso da conserva.
– pimentas e pratos picantes: os pratos apimentados potencializam o tanino dos tintos e a sensação de álcool elevado. Já perceberam que países como a Índia não têm o hábito do consumo de vinhos em suas refeições, tendo em vista essa característica marcante em sua culinária? Caso se insista nessa abordagem, algo capaz de amenizar o ardor acentuado das pimentas, como o açúcar, deve ser levado em consideração para compor a produção e favorecer a harmonização.
Parece muito e ainda há tanto, acreditem! Mas vamos com calma. O que importa aqui é levarmos em consideração que harmonização não é uma ciência exata e que sempre vai depender de uma série de variáveis. Treine o seu paladar e permita-se criar as suas referências de sabor, texturas e aromas. Prove de tudo! Harmonizar pratos com base em fichas técnicas de vinhos e descrição dos ingredientes usados pelos chefs é das piores coisas que já vi sommeliers e cozinheiros fazendo. Comer e beber precisa de prática, vivência e intuição. Pois bem, pratique!
E até a próxima, com uma deliciosa harmonização natalina que já estou preparando com receituário e tudo o que vocês, fiéis leitoras e leitores Única merecem.