Vinícolas urbanas
Aventuras epicuristas para almas citadinas
Quem já leu alguma coluna de enoturismo da Única, como esta, esta ou esta aqui lá do início, sabe que somos partidárias da descentralização do consumo, do turismo, do existir de forma geral. Mas somos ainda mais partidárias da liberdade de cada um/a ser feliz fazendo o que gosta.
Tem quem queira compor rocks rurais para viver e tem quem satisfaça a carência de natureza com uma ida ao sacolão e meia-dúzia de vasos de begônia no apê de chão de taco. Para esses e todo mundo no meio, unidos e unidas pelo amor ao vinho, a notícia é boa: “visitar uma vinícola” já não significa ter que ir ao Chile, à Europa, à Serra Gaúcha. De cada um dos cinco continentes, deixo aqui pelo menos um exemplo de vinícola urbana que epitomiza a união dos setores primário, secundário e terciário: produz os vinhos in loco, mostra como se faz a magia e, como prova, serve o resultado em taças.
Oceania
Pioneira que é em reciclar tradições e conceitos antigos associados à indústria e ao estudo do vinho, a Austrália não tem uma vinícola urbana, mas uma lista delas, pensadas e montadas para tudo quanto é freguês. Para escolher um exemplo, a Urban Winery Sydney, na capital de New South Wales, é uma vinícola em funcionamento a todo vapor, com infraestrutura impressionante e vinhos feitos de uvas vindas de todo o país. E, como é de costume na Austrália, o enoturismo está no coração de suas operações, que incluem um wine bar e espaço para eventos como casamentos, jantares e degustações. Para coroar a multifuncionalidade do espaço, visitantes podem (e essa é pra quem pode me$mo) fazer parte de diferentes etapas da produção de vinhos, da pisa ao corte (blend).
Europa
Quase 700 hectares de vinhas plantadas dentro dos limites de Viena, beirando o mítico rio Danúbio, fazem da capital austríaca a única cidade do mundo com vinhedos extensos o suficiente para ser considerada uma região vitivinícola. Ela tem, inclusive, a sua própria DAC, acrônimo para Districtus Austriae Controllatus, o equivalente local das denominações de origem. Com seus 190 viticultores, a zona também é berço de uma tradição importante, estruturante para a ascensão da cultura vínica na Áustria: os heuriges. Surgidos em finais do século 18, são tipo tavernas onde cada produtor(a) pode vender seu próprio vinho diretamente ao consumidor. Correndo o risco de cair (e caindo) em estereótipos, as óperas, valsas e salsichas tão famosas de Viena não valem mais o seu tempo do que os vinhedos e tascas em plena cidade.
África
Num edifício do século 18, no centro do centro do centro de Cape Town, na África do Sul, a Dorrance Wines recebe excursionistas curiosos em seus corredores estreitos, com paredes de granito exposto, filas de barricas mal iluminadas e uma antiga forja de metais. A atmosfera faz parecer que centenas de safras já foram produzidas ali, embora tenha sido na década de 1990 que Christophe e Sabrina Durand montaram acampamento neste que é um dos prédios mais históricos da Cidade do Cabo. Além da visita e degustação, é possível ficar para curtir o restaurante, onde são servidos os vinhos da casa e do mundo todo.
América do Norte
No Noroeste Pacífico dos Estados Unidos, a pouco mais de 2 horas da fronteira com o Canadá, está a cidade de Seattle. Berço do grunge, do Starbucks e de uma das maiores comunidades LGBT do mundo, a capital do estado de Washington não se movimenta só de café. Em 2011, quatro produtores de vinho se uniram numa espécie de cooperativa para potencializar seus trabalhos e convencer os consumidores de vinho de que eles não precisavam se locomover até as regiões produtoras de uva. Hoje, 2024, são 24 os integrantes do coletivo Seattle Urban Wineries, que oferece um mapa das vinícolas participantes, sejam elas unidades de produção ou apenas salas de prova (tasting rooms).
América do Sul
Cidades brasileiras como Brasília e Porto Alegre já têm vinícolas urbanas pra chamarem de suas. Mas na Rua Francisco Leitão, plena capital paulistana, tem um rolezinho bacana pra quem quer saber mais sobre produção de vinhos: foi lá que o economista Daniel Colli escolheu a casa – sim, a casa – onde nasceriam seus vinhos. As uvas vêm de Cunha (SP), onde estão seus vinhedos próprios, e também do Rio Grande do Sul e de Petrolina (PE), onde trabalha com agricultores para comprar uvas que vão de Tannat a Viognier, de Pinot a Arinto. Mas é no buchicho de Pinheiros que efetivamente acontece a vinificação – e também a distribuição, a consumação, a celebração. O espaço tem portas abertas a visitantes e vira-e-mexe faz eventos criativos como a exibição de filmes ao ar livre, em que tem pipoca pra quem é de pipoca e vinho pra quem é de vinho. Quem é dos dois… que faça bom proveito.
Ásia
Definitivamente há exemplos mais glamurosos para representar o continente asiático. Mas se Tóquio estivesse nos meus planos de viagem a curto prazo, e eu estivesse decidida a provar vinhos entre um izakaya e outro, era na Fukagawa Winery que eu ia bater ponto. No vuco-vuco de um bairro operário da capital japonesa, em 2016, nasceu este projeto originalíssimo de Toru Nakamoto. Nele, os vinhos são produzidos a partir de uvas compradas da reputada região de Yamanashi, mas Nakamoto também tem vinhas próprias: vinhas plantadas no telhado de um supermercado ali perto. É claro que essas 100 videiras urbanitas não são suficientes para bancar o negócio, mas os 10kg de rendimento são usados como levedura para arranque da fermentação. Ah, e quem seguir pelo corredor apertado que vai dar no fundo do prédio chegará a um restaurante miúdo, de inspiração italiana, com vista envidraçada para a sala de produção. Eu poderia ter inventado essa história toda, mas eu juro que eu não teria criatividade pra isso.