percepção crossmodal quando flores tornam um tannat delicado como um pinot noir

Percepção Crossmodal: quando flores tornam um Tannat delicado como um Pinot Noir

Este mês, retomamos nossa série sobre percepção multisensorial e vamos falar sobre um tema… polêmico? Sim, mas também inusitado, revelador e… chocante! Isso mesmo! Pois, pela nossa tola soberba, achamos que sempre estamos conscientemente no controle de nossas percepções, o que está longe de ser verdade!

Então, vamos falar sobre duas coisas aqui neste mês: a crossmodalidade (ou modal cruzado, em inglês “Crossmodality“, aqui usaremos o neologismo “Crossmodalidade”) e o genial experimento liderado pelo psicólogo (e cientista) brasileiro Heber Rodrigues (sim, já falamos dele na coluna do mês passado sobre Mineralidade) que ele fez em conjunto com outras pessoas, dentre elas a brilhante Fabi Carvalho, do projeto The Coffee Sensorium (e minha guru sobre esse assunto).

Como vocês sabem bem, o vinho oferece uma complexidade imensa de sabores e aromas. Desde aquela fruta simples que todo mundo sempre identifica até nuances de terra, couro e especiarias – quem nunca ouviu o famoso Alcaçuz em alguma degustação com amigos entendidos?

Mas você já se perguntou se há algo mais que possa afetar sua experiência de degustação, algo tão sutil como um vaso de flores no seu campo de visão? Ou a cor das paredes do local onde você está bebendo com seus amigos?

E é aí que entra o experimento dos nossos cientistas brasileiros: em uma sala preparada para uma degustação às cegas de vinhos, o Dr. Heber Rodrigues irá testar uma teoria que adicionará uma nova camada a essa complexa sinfonia dos sentidos (para quem não leu meu artigo sobre Sistema Olfativo, dá uma olhada). Não se trata de uma nova variedade de uva ou uma taça que custa mais de mil reais e que foi soprada por um artesão austríaco; mas sim, algo tão humilde e bonito quanto uma flor.

O estudo intrigante publicado por Heber & equipe abre um novo campo para entender como percebemos uma taça de vinho. A pesquisa sugere que o estilo e a cor das flores ao nosso redor enquanto degustamos um vinho podem influenciar nossa percepção sobre o líquido que estamos degustando.

Lembra do nosso artigo “O Sabor do Vinho Está no Líquido ou em Você?” Lá construímos a tese de que o sabor estava em você, no seu cérebro. E aproveitando o gancho com esse artigo, lembra a história do Champagne e da lixa? Finalmente vamos explicar a teoria por trás desse viés. E depois vamos falar do tão falado experimento que está dando o que falar na imprensa inglesa (veja aqui, e aqui). 

Então pra não perder o hábito desta coluna, começaremos com uma teoriazinha, porque eu sei que vocês gostam…. Ao fim do texto trarei um resumão da pesquisa do Heber Rodrigiues.

O Cérebro, este poderoso multiprocessador de informações

Quando pensamos sobre o cérebro, a primeira impressão que temos é a de um órgão passivo que ficar esperando ser estimulado pelos nossos sentidos. De fato, recebemos informações sensoriais, como luz, som e cheiros, que ativam nossos receptores sensoriais, disparam potenciais de ação e são processados em nossos córtices sensoriais. A informação ascende pela hierarquia cortical, chegando a áreas de associação como o córtex órbito-frontal, e nos tornamos conscientes da percepção. Este é o modelo clássico, mas apenas arranha a superfície da verdadeira complexidade cerebral.

Mas o cérebro não é apenas um analisador passivo de estímulos. Ele aprende. E essa habilidade de aprender torna o cérebro ativo e preditivo. Nosso cérebro não apenas percebe o mundo como ele é; ele o antecipa com base em experiências anteriores. É capaz de discernir padrões em um mundo caótico de estímulos, concentrando-se no que não muda e ignorando as variações.

 

Essencialmente, o cérebro extrai “estatísticas” da exposição dele (nossa) ao mundo. Suponha que ouvimos a porta se abrir; imediatamente esperamos que alguém entre na sala, pois nosso cérebro já relacionou esses dois eventos. O mesmo ocorre quando beliscamos uma barra de chocolate e esperamos seu sabor doce. Esse aprendizado reforça nossas redes neurais, resultando em modelos internos que nosso cérebro usa para categorizar e entender o mundo.

 

Nossa percepção é, portanto, uma fusão de informação sensorial atual com nossas experiências passadas. A percepção é um processo de “cima para baixo” (top-down), onde os modelos internos orientam e moldam nossa experiência. 

Voltemos à barra de chocolate: quando a gente olha aquela linda embalagem pela primeira vez, por exemplo, nosso cérebro realiza uma “inferência probabilística” baseada em todas as outras barras de chocolate que já vimos. Não perguntamos “o que é isso?”, mas sim “com o que isso se parece?”

 

E porque o número dos nossos neurônios é limitado, o cérebro se utiliza de uma arquitetura inteligente para processar um número quase infinito de estímulos: os neurônios formam redes flexíveis e dinâmicas que podem se adaptar e aprender com novas informações.

 

Assim, a percepção sensorial é uma complexa “sinfonia” de neurônios disparando várias notas musicais em uma peça musical super intrincada. Mas como, exatamente, o cérebro traduz a cacofonia visual e sensorial do mundo real em algo significativo?

 

A Linguagem dos Neurônios

Imagine que você está olhando para aquela barra de chocolate. Neurônios no seu córtex visual disparam em uma série específica, como se estivessem digitando uma senha secreta que significa “CHOCOLATE”. Agora, mude o objeto para um abacaxi, e uma nova série de neurônios entra em ação, muitos deles distintos, mas alguns sobrepostos ao ‘código do chocolate’. O que estamos vendo aqui é um vocabulário neural que permite a identificação rápida e eficiente de estímulos externos.

Quando nos deparamos repetidamente com o mesmo objeto, a “senha” neural para esse objeto se torna cada vez mais forte. Isso é algo físico: as conexões entre os neurônios se fortalecem, estabelecendo uma espécie de “impressão digital” para identificar esse objeto no seu cérebro. Essa é a base da memória e da percepção.

Essas impressões digitais neurais também formam os “modelos internos”. Estes não são apenas registros neurais de objetos ou eventos individuais, mas também sistemas complexos de crenças e memórias que influenciam como processamos novas informações. Por exemplo, se o seu modelo interno de “cadeira” é algo com pés, um assento e um encosto, você reconhecerá uma infinidade de variações de cadeiras, independentemente do material, cor ou forma.

 

Impacto na degustação de alimentos e bebidas

Vamos aplicar esse conceito à degustação. Quando você vê uma variedade de frutas, seus modelos internos já estão preparados para classificá-las como “doces” ou “ácidas” com base na cor, mesmo antes de experimentá-las. Este é um exemplo de como as percepções sensoriais são profundamente interconectadas e influenciadas por uma série de fatores, incluindo experiências passadas e até traços de personalidade.

Mas…

No caso de alimentos e bebidas, as expectativas também são influenciadas pela crossmodalidade. Se perguntarmos qual grupo de frutas e verduras tem maior probabilidade de ser doce e qual tem maior probabilidade de ser ácido ou amargo, a maioria das pessoas dirá, somente pela cor, que as frutas de cores vermelhas tenderão a serem doces e as de cores verdes tenderão a ser ácidas ou até amargas. Isso ocorre porque o vermelho gera uma expectativa de doçura por regularidade estatística, enquanto os alimentos verdes costumam ser mais ácidos ou amargos.

Ok, e o que é a Crossmodalidade?

Crossmodalidade refere-se à tendência automática do nosso cérebro de processar e associar informações provenientes de diferentes sentidos. Por exemplo, o que você vê pode afetar o que você saboreia, e vice-versa. Esta associação automática ocorre em áreas do cérebro às quais não temos acesso consciente.

Assim, podemos dizer que a crossmodalidade é a intersecção de nossos sentidos; é o cruzamento onde o paladar encontra o olfato, a visão tropeça no tato, e a audição cumprimenta o paladar em um abraço caloroso de urso. E realmente não se trata de uma escolha consciente: como um compositor de uma sinfonia sensorial, o cérebro faz isso automaticamente, antes mesmo de você degustar aquele Cabernet Sauvignon e detectar nuances de mirtilo, herbáceos e notas terrosas.

Nossos centros corticais – órbito frontal, temporal, parietal – são como uma equipe de enólogos, misturando e ajustando nossas experiências sensoriais em um blend harmonioso (quase sempre).

Dentro deste domínio, há o que é conhecido como ‘viés crossmodal’, uma influência recíproca onde um sentido pode colorir a nossa percepção em outro. Imagine o vermelho-rubi de um Pinot Noir. Essa cor, antes mesmo de você provar, já inclina sua expectativa para um sabor rico, frutado, talvez até doce.

Pois bem: na teoria da neurociência, há dois tipos principais de vieses crossmodais: os superaditivos e subaditivos. 

Em um estado de ‘superaditividade’, há uma harmonia sinestésica, como associar o doce à cor vermelha, ou como quando um cachorro late e ouvimos ‘AU-AU’. Seu cérebro fica eufórico com essa sincronia, como se todas as peças do quebra-cabeça estivessem se encaixando perfeitamente. 

Em contraste, ‘subaditividade’ ocorre quando há um descompasso sensorial — por exemplo, se ouvirmos um passarinho latindo um sonoro AU-AU de um ansioso Spitz Alemão saindo pra passear depois de uma semana trancado em casa. Entramos em parafusos nessa situação, pois isso ativa um alarme em seu cérebro, levando a uma série de especulações e ajustes de modelos mentais (já que um passarinho latindo ao invés de piar não é o que esperaríamos).

A Universalidade da Experiência Crossmodal

Pesquisas mostram que esse fenômeno é incrivelmente resiliente entre diferentes culturas e idades. As associações (superaditividade) entre cores e gostos básicos, por exemplo, se mantêm surpreendentemente consistentes em um âmbito global. O laranja evoca doçura tanto em Tóquio quanto em Paris; o verde escuro sinaliza amargor, seja você um idoso em Oslo ou uma criança em Buenos Aires.

E essa não é uma descoberta recente. Em um experimento clássico da década de 1920, um psicólogo alemão apresentou duas formas geométricas para as pessoas e pediu-lhes que as nomeassem como ‘Bouba’ ou ‘Kiki’. A maioria esmagadora atribuiu ‘Kiki’ à forma angular e ‘Bouba’ à forma arredondada, demonstrando uma intrincada relação crossmodal entre forma e som.

O terreno ainda é fértil para estudos mais avançados. Experimentos já demonstraram que a percepção do sabor pode ser influenciada pela forma do alimento ou até mesmo pelo formato e textura do copo ou taça que você usa para ingerir uma bebida. No caso dos vinhos, um tinto pode parecer mais doce quando servido em um copo arredondado do que em um angular. Agora imagine a revolução que poderia acontecer na indústria de vinhos se pudéssemos compreender plenamente como essas crossmodalidades afetam nossas preferências e percepções.

E é aqui que entra o experimento dos nossos amigos Brasileiros: vamos começar a testar e entender o que já estamos conseguindo comprovar dos vieses da crossmodalidade.

As flores (de plástico ou não) não morrem – como também nos influenciam

De volta ao estudo do Heber! (E que bom que você permaneceu com a gente até aqui!)

Em termos simples, o objetivo principal do estudo era entender se flores poderiam mudar o que as pessoas pensam e sentem sobre um vinho.

Essa ideia se baseou nas teorias ambientais/atmosféricas e de multimodalidade (desenvolvidas pelo cientista inglês Charles Spence e Fabiana Carvalho). A partir delas foi hipotetizado que a presença de arranjos de flores durante uma sessão de degustação de vinhos, bem como seu padrão de composição de cores (ou seja, sendo delicado ou robusto), iria alterar a percepção da delicadeza ou robustez dos vinhos, seu perfil descritivo, a percepção da elegância, complexidade e agradabilidade hedônica (o famoso “gosto/não gosto) dos vinhos, bem como a experiência dos participantes da degustação.

Assim, Heber Rodrigues e colegas resolveram explorar como a estética de uma sala – mais especificamente, arranjos florais – poderia afetar a percepção sensorial e hedônica dos vinhos experimentados neste ambiente. 

O experimento foi super meticuloso no design (afinal, eles são cientistas). Dois tipos de vinhos foram escolhidos para o estudo: um Pinot Noir Australiano, com características sensoriais mais “delicadas”, e um Tannat Uruguaio, considerado mais “robusto”. Como falamos, estes foram degustados em ambientes adornados com arranjos florais de características distintas – delicadas e robustas – além de um cenário sem flores para controle. A metodologia buscou analisar se há um efeito crossmodal, onde um sentido (visão) pode influenciar outro (gosto e olfato).

Assim, os voluntários degustaram esses vinhos sob diferentes condições na sala, cada uma montada para representar uma estética floral específica: uma com um arranjo considerado delicado, outra com um arranjo considerado robusto e outra sem arranjo, que seria o controle. 

E o que foi observado? Surpresa (nem tanto): o Pinot Noir foi muitas vezes descrito como mais “delicado” quando provado na presença de um arranjo de flores igualmente delicado.

Mas o mais interessante é que os dados revelaram que há, de fato, um efeito significativo dos arranjos florais na percepção não só no Pinot, mas também no Tannat! Curiosamente, o vinho Tannat foi mais frequentemente descrito como “delicado” quando degustado no ambiente com o arranjo floral delicado, em contraste com quando foi degustado no ambiente robusto ou no ambiente de controle. 

Aliás, outro fato inusitado no estudo: os vinhos foram menos apreciados quando saboreados na presença do arranjo de flores “delicado”. Parece que o excesso de delicadeza não é necessariamente uma coisa boa, especialmente quando falamos de sabores complexos e encorpados.

Então resumindo:

  • Ambos os vinhos (Pinot Noir – supostamente delicado – e Tannat – supostamente robusto -) quando degustados na presença de um arranjo de flores delicado foram mais frequentemente descritos como “delicados”.
  • Ambos os vinhos foram menos apreciados quando degustados na presença do arranjo de flores delicado.
  • E o efeito não foi observado para o arranjo de flores robusto.

Concluindo…

O estudo conclui sugerindo que há coisas que ainda precisam de pesquisas adicionais como explorar mais o impacto de outros elementos como utensílios de mesa, música e até diferenças geracionais entre degustadores.

Mas vamos lá: um viva para as possibilidades infinitas que a crossmodalidade pode nos trazer: desde um simples teaser de um humilde artigo de uma revista digital brasileira – sugerindo que a combinação de passar uma lixa nas palmas da sua mão pode alterar sua percepção das borbulhas de um espumante – até outras que poderão ser revolucionárias para a indústria da hospitalidade. Planners de eventos e sommeliers poderiam criar ambientes que elevam a experiência de degustação a um novo nível, usando não apenas os elementos clássicos de mesa, mas também incorporando arranjos florais como parte do storytelling de suas celebrações.

Até parafrasearemos uma declaração do Heber para o Drink Business sobre esse resultado:

O vinho é uma das grandes experiências sensoriais do mundo, mas esta nova pesquisa sugere que pode ser influenciada por fatores fora do copo, como o arranjo de flores na mesa.

Isso significa que, se você planeja servir um vinho muito áspero e desafiador em sua festa de jantar, arranjar algumas flores delicadas pode fazê-lo parecer menos robusto e mais frutado, elegante e floral

Embora mais trabalho precise ser feito, ele mostra que organizadores de eventos podem melhorar a experiência de seus convidados combinando corretamente elementos externos com vinhos cuidadosamente escolhidos – e quem não gostaria de beber isso?”

É isso meus caros leitores: da próxima vez que você for a uma degustação, não se surpreenda se, ao lado da taça, houver um elegante arranjo floral esperando para encantar não apenas seus olhos, mas também influenciar seu olfato e paladar.

Abraços e até a próxima.

Assinatura Única Pablo Fernandez

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