A arte de construir sabores: o sistema olfativo Pablo Fernandez

A arte de construir sabores: o sistema olfativo

Bem amigos da Vinhos Única! Não somos Galvão, tampouco Copa do Mundo, mas haja nariz, boca e cérebro para seguirmos com o tópico desta coluna: o sistema olfativo.

Vamos direto ao ponto: o olfato ou olfativo, sistema que está associado ao nariz e à boca, é o sentido principal para a percepção de sabor. Ele também é chamado de “senso químico”. Como esse nome alternativo sugere, o olfativo é quem nos permite identificar os estímulos químicos do ambiente. Há uma estimativa de que os seres humanos podem perceber de 10 mil a 100 mil substâncias químicas de odores distintos. Chamemos essas substâncias de odorantes. E o que são exatamente os odorantes? São pequenas moléculas e compostos voláteis que são transportados juntamente com o ar que respiramos até a entrada do nosso sistema olfativo.

Não deixemos de massagear o ego dele: nosso sistema olfativo é espetacular. Através deles, conseguimos facilmente perceber pequenas nuances de alterações nestes odorantes. E mais: é ele o principal agente na construção da nossa percepção de sabor. Vamos entender como?

Comecemos então por um experimento dos anos 1960. Foram selecionadas diversas substâncias, como café, vinho, vinagre, cebola, alho e outras (ver figura a seguir). Todas foram transformadas em líquidos para que se pudesse verificar os sabores através do receptor retronasal, e também para controlar/uniformizar a sensação de textura e impedir a influência do tato. Líquido produzido, os pesquisadores foram gotejando-o sobre a língua dos participantes, e o que se pedia às pessoas era que se tentasse identificar os sabores: na primeira vez sem tapar o nariz (odor + gosto), e na segunda, com o nariz tapado (só gosto). O que se concluiu foi que a contribuição do olfato na percepção de sabor variou de 75% a 95% dependendo do alimento ou bebida.

Faça esse experimento em casa com o vinho e veja por você mesmo. Pra ficar mais divertido: tampe o nariz, tome o vinho e, antes de engolir, destampe-o.

Complexo e pouco conhecido: como funciona o olfativo?

Nosso sistema olfativo é dividido em dois sub-sistemas de captação dos estímulos:

  • o ortonasal, que é responsável pela percepção de aromas e odores presentes no ar e que são inspirados a partir da nossa cavidade nasal;
  • e o retronasal, quando a percepção acontece a partir do estímulo dentro da boca, há volatilização dos aromas e o odor é expirado, estimulando os receptores do sistema olfativo (que são os mesmos do ortonasal); também está incluída aqui a percepção de outros elementos em conjunto (como o gosto, pelo sistema gustativo, e texturas/temperatura/pressão, através do somatossensorial).

Resumindo: “ortonasal” diz respeito aos cheiros FORA da boca sentidos pela inspiração, e o “retronasal” são os cheiros de DENTRO da boca que são empurrados para fora pela expiração.

O caminho do aroma até o início do processamento pelo cérebro

A pessoa inspira ou expira, os odorantes entram pelo nariz e se ligam à entrada do sistema olfativo, que se chama epitélio olfativo. Nessa entrada há um muco de proteínas recobrindo esse receptor, e a partir deles ocorre o transporte desses odorantes às terminações sensitivas dos neurônios. Chegando aos neurônios, a sinapse acontece no bulbo olfatório e, dali, são transmitidos impulsos elétricos para o processamento no cérebro – mais especificamente no córtex olfativo (que já abordamos no texto O sabor do vinho está no líquido ou em você?). Mas aqui tem uma especificidade: além de ir pro córtex olfativo, o impulso também é transmitido para o sistema límbico – e é aqui que as coisas começam a ficar interessantes. Mas, antes disso, vamos falar de outras peculiaridades do processamento no sistema olfativo.

O entendimento completo do processamento olfativo é algo ainda muito inicial, se compararmos com o que já se conhece sobre a audição e o sentido visual. E não é somente o olfativo que está defasado nesses termos. Os sentidos químicos, que incluem o gustativo e tato/somatossensorial, como um todo, também carecem de nosso conhecimento. Inclusive, isso foi algo muito sentido durante a pandemia de COVID, que levou cientistas a se debruçarem sobre o assunto para entender por que algumas pessoas perdem o sentido do olfato e qual tratamento é o mais adequado.

No processamento: caos e sinfonia

Voltando aos receptores: temos muitos. Não sabemos ao certo quantos, mas já foram 851 tipos de receptores de olfato descritos, e esse número segue aumentando. E como antecipamos, a outra peculiaridade do sistema olfativo é que o funcionamento dele é diferente de todos os outros sistemas. Aliás, o funcionamento do sistema olfativo é uma exceção a uma regra biológica, pois ele não tem especificidade de ligação entre ligante e receptor.

Explico: a nível químico, pense em algo que tem apenas uma ligação específica, que não se permite acoplar com nada diferente daquilo com que ele foi inicialmente concebido pra combinar. Quase tudo funciona assim. Nosso corpo quase sempre funciona assim, seguindo essa regra biológica. Mas no olfativo é diferente.

Essa falta de especificidade, chamada de promiscuidade dos receptores olfativos, foi objeto do prêmio Nobel de Medicina de 2004. Recente, né? Isso é ontem na escala de tempo do conhecimento.

Conseguimos observar a falta de especificidade olhando a ilustração abaixo: “Promiscuidade dos receptores olfativos”. Note como o mesmo odorante pode se ligar a vários receptores. No exemplo abaixo, o odorante B (doce, herbal e amadeirado) pode se ligar tanto ao receptor olfativo 2 quanto ao 6.  Ao mesmo tempo, o receptor 1 consegue reconhecer vários odorantes (C, E e H). Se estivéssemos observando o gustativo, o receptor 1 se limitaria a identificar um odorante e nada mais.

Assim, a nossa percepção olfativa não é resultado de uma só ligação, como aconteceria, por exemplo, com a percepção de doçura no gosto: a glicose ligou no receptor, a pessoa percebeu doce. O olfativo é caótico. Odorantes se ligam em vários receptores e vão criando um padrão de ativação que resulta em um cheiro no final, que por sua vez é o produto do padrão de ativação de certos odorantes com certos receptores.

Lembra que falamos que o olfativo é o sistema artista? Podemos assumir uma analogia de que ele é como uma orquestra performando uma sinfonia com vários instrumentistas. E é tudo tão complexo, que existem casos em que, ao remover-se um só odorante ou acrescentar-se outro, a resposta percebida do cheiro em questão muda completamente, vira algo totalmente distinto. Como mudar de um violino para um oboé.

Como se não bastasse essa complexidade toda na recepção, ainda tem a emoção envolvida no processamento. Isso porque, a partir do bulbo olfatório, temos duas portas de entrada no nosso cérebro para a informação olfativa: a do caminho para o córtex olfativo (“que cheiro é esse?”), e a do caminho para o sistema límbico, que vai processar valência (“esse cheiro é bom ou mau?”). Então falemos do lado artista do negócio, que é essa via a caminho do sistema límbico.

Sensação + emoção = a arte de construir sabores

O sistema límbico é o conjunto responsável pelo processamento das emoções. Dentre as áreas que compõem o sistema límbico, as mais importantes para o nosso olfativo são a amígdala e o hipocampo. Esse último, o hipocampo, é o responsável pela formação da memória episódica – que são as principais memórias que guardamos durante toda nossa vida.

Então é isso: o sistema olfativo é totalmente incorporado pelas nossas emoções e também diretamente ligado às nossas memórias. Agora você sabe por que tem gatilhos ao sentir certos cheiros e aromas. É aquela viagem no tempo quando sente um cheiro que lembra o perfume da vovó. E também é por isso que, quando fazemos descrições sensoriais do olfato, elas estão intensamente ligadas à oposição “eu gosto/não gosto”, ao que é hedônico, ao prazer percebido. Aqui estamos no sistema responsável pelas nossas emoções.

 

Esse é um dos fatores que fazem com que a gente tenha mais dificuldade em identificar os aromas e sabores. Essa resposta em nosso cérebro, “acho muito bom” ou “acho isso fedido”, é muito mais rápida do que uma resposta objetiva, racional e descritiva. Mas olha a boa notícia: a parte de descrição e linguagem é perfeitamente possível de aprender com treinamento. É como aprender uma língua nova.

Concluindo…

Já havíamos falado que o córtex orbitofrontal é o lugar responsável pela construção integrada da experiência consciente de sabor, pois ele junta todas as informações percebidas. Isso acontece para o gosto e o olfato provenientes dos sistemas olfativos e gustativos, mas também para o tato, a visão e a audição. E agora o fator extra: a informação afetiva, essa dada pelas nossas emoções sobre os alimentos, também inclui as respostas hedônicas (“e eu gosto ou não gosto”) e as ligadas às recompensas (“se isso me dá algo em troca ou não”). E é aqui que a experiência do sabor é proporcionada pra gente, possibilitando sua percepção. Caminho longo até chegarmos aqui, não é mesmo?

E com isso terminamos o olfativo. Na sequência, vamos tentar entender o sistema favorito dos taninos e do Champagne, o somatossensorial. É ele o responsável por aquela nossa experiência do espumante com a lixa. Não lembra? Está aqui.

Pra finalizar, uma dica: a nossa guru Fabiana Carvalho vai dar um curso online agora em 20 e 21 de março de 2023 com o tema “Como melhorar suas habilidades sensoriais”.

Até mês que vem!

Assinatura Única Pablo Fernandez

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