Migrações humanas, DNA e a arte de dar nomes: uma história da classificação das uvas
Olá!
Mês passado comentamos sobre a pesquisa revolucionária publicada na revista Science sobre a origem das uvas viníferas. Este mês vamos conversar sobre a história por trás dessa ciência e também sobre a evolução do conhecimento e identificação das variedades, e sobretudo como o sequenciamento de DNA no fim do século passado ajudou a mudar o mundo do vinho.
Os homens e os nomes das variedades
Não há como falar de uva, vinho e videira sem falar do homem, seus movimentos migratórios e, com eles, as mudanças no idioma, seja falado ou escrito. Palavras, substantivos, a linguagem que usamos para descrever as coisas que nos cercam, tudo isso foi mudando. Por isso, os nomes e denominações das variedades de uva quase sempre mudaram ao longo dos tempos, evoluindo de línguas da antiguidade como o grego ou latim clássico para outras diversas línguas faladas na Idade Média e posteriormente para as línguas modernas. Essas mudanças em sequência, entre outros fatores, dificultaram o rastreio da evolução das variedades de uva, o que também tornou mais trabalhoso entender com precisão onde elas surgiram. Pra completar, batizar com nomes as variedades de uvas é um fenômeno relativamente recente em nossa história, e isso, como devem imaginar, não facilitou o trabalho dos investigadores.
Os primeiros documentos que mencionam nomes de vinhos são registros em legislações municipais e leis de impostos da Idade Média que se referem a vinhos de luxo, como Malvasie, Moscati, Vernacce e Trebbiani (algum desses nomes é familiar para você?). Não foi até depois dos anos 1500 que os nomes dados a variedades de uvas se tornaram mais frequentes e precisos. Até então e muito depois, o vinho foi quase sempre sendo batizado «com o nome da região ou vinhedo onde era produzido, e não pela variedade de uva usada.
Foi somente em meados do século 20 que o escritor de vinhos norteamericano Frank Schoonmaker incentivou os produtores da Califórnia a nomearem seus vinhos com as suas respectivas variedades de uva, levando à introdução da rotulagem varietal. Isso facilitou a vida dos consumidores de vinho, que finalmente conseguiram entender o que estavam comprando sem precisar ter estudado geografia vitivinícola. O fenômeno se ampliou especialmente fora da Europa, onde a rotulagem varietal se tornou popular e levou a um aumento do interesse pelas variedades de uva.
O resultado foi uma ampla gama de cepas cultivadas, um interesse geral nas variedades locais e indígenas e uma consequente preservação de vinhas históricas em todo o mundo que estavam em risco.
A identificação científica das variedades de uva evoluiu de uma forma de arte para ciência. Falemos então dessa trajetória.
Observar, descrever, classificar
Como vimos no mês passado, há algumas hipóteses para o surgimento da uva vinífera. Com o tempo, ela foi se espalhando junto com a migração do homem pelo mundo. Por exemplo, a expansão do cultivo da uva na Europa Ocidental está ligada ao Império Romano e ao Cristianismo, seguindo as rotas comerciais ao longo dos rios. Enquanto isso, a expansão do Islã (principalmente no Norte da África e Península Ibérica) influenciou o cultivo de uvas, favorecendo as de mesa em vez daquelas para vinho. A vinicultura foi introduzida no Novo Mundo mais tarde, por missionários e colonos.
Com a disseminação mundo afora, existem (catalogadas) hoje cerca de 10.000 castas/variedades de uvas viníferas, resultantes quer da propagação vegetativa (por estaquia) quer da reprodução sexuada (por sementes). A reprodução sexual desempenhou um papel importante na evolução da videira, criando diversas castas como Cabernet Sauvignon, Chardonnay e Merlot.
Já muito antes da ciência moderna da genética, vários ampelógrafos categorizavam variedades de uvas de distintos lugares. Um da Espanha (1807) classificou as uvas da Andaluzia, outro da França (1845) fez o mesmo para as uvas francesas, e um terceiro da Rússia (1933) agrupou as uvas húngaras. Um outro ampelógrafo russo (1938 – 1946) foi o primeiro a sugerir uma classificação em larga escala dos tipos de uva, dividindo-os em três grupos principais com base em sua forma, ambiente e origens.
Mas precisávamos de mais do que isso. E então, no final do século 20, a revolução começou. A ampelografia, prática de descrever e classificar as vinhas com base na observação visual e na ilustração pictórica, não seria mais a única ferramenta para esse uso. Ela acabou sendo largamente substituída pela ampelologia, que é o estudo científico para identificação das castas. Embora a ampelografia forneça belas ilustrações de uvas, ela é insuficiente para uma análise completa da videira e pode ser enganosa. A ciência moderna permite-nos estudar as variedades de uva a nível molecular, tornando a análise de DNA o método preferido para a identificação delas.
Ampelografia: prática de descrição e classificação de vinhas com base na observação e ilustração
Ampelologia: estudo científico para identificação de castas
O DNA entra na jogada
O estudo pelo DNA é algo relativamente novo: começou na década de 1990, quando em 1997 um estudo confirmou que a Cabernet Sauvignon era “filha” da Cabernet Franc e Sauvignon Blanc. A partir de então, muita coisa mudou, e muitas ideias que se tinha sobre origens de variedades de uvas caiu por terra, além da descoberta de parentescos inusitados (como a origem meridional/Siciliana/Calabrese da uva italiana Sangiovese, que se acreditava ser uma uva do Norte da Itália).
A propósito disso, um estudo recente descobriu que muitas variedades de uvas estão conectadas por relacionamentos próximos entre pais e filhos ou irmãos. Isso sugere que a diversidade vitícola da Europa Ocidental vem de algumas variedades fundadoras, possivelmente ancestrais de Pinot, Gouais Blanc e outras.
Como os humanos, as videiras têm seus próprios e exclusivos perfis de DNA. Duas videiras são consideradas geneticamente idênticas quando o teste mostra que elas possuem sequências de DNA iguais em um número suficiente de sítios marcadores (seis é geralmente aceitável). Os locais, chamados microssatélites, também são conhecidos como repetições de sequência única ou SSRs. Em termos muito simples, essas variedades compartilham uma impressão digital molecular suficiente para serem consideradas idênticas. Porém, o sequenciamento não é feito por completo, por ser muito complexo, demorado, caro. E é justamente aquelas partes que não são sequenciadas que são as responsáveis por essas diferenças, nuances e mudanças que são observadas a olho nu nas uvas, cachos e videiras.
Assim sendo, diferenças morfológicas e fisiológicas podem existir em variedades aparentemente idênticas. Um exemplo clássico são as castas Pinot Noir, Pinot Grigio/Gris e Pinot Blanc, variedades geneticamente idênticas que exibem diferenças na aparência e nas características do vinho resultante.
Os testes de DNA continuam avançando, tornando possível analisar mais do que os seis marcadores típicos usados para identificar castas. Isso é importante porque mais marcadores revelam variações genéticas, como visto na família Pinot. No entanto, a análise de DNA é complexa, e a interpretação é necessária. À medida que as pesquisas de DNA avançam, resultados mais precisos e completos vão surgindo, melhorando nossa compreensão da genética da videira.
Aliás, um parênteses para a origem da Pinot: considerada uma das castas mais importantes e antigas do mundo, ela teve origem em vinhas silvestres/selvagens, fruto de um cruzamento espontâneo ocorrido há cerca de 2000 anos, quando vinhas de origem asiática foram trazidas pelos gregos da antiga colônia de Massalia (hoje Marseille, na França), na costa mediterrânea da atual França, a leste do rio Rhône. É possível encontrar vestígios dessas introgressões (cruzamentos acidentais com vinhas silvestres) em seu DNA.
Portanto, questões aparentemente simples sobre o que é uma variedade de uva e como uma nova casta surge são, na verdade, bastante complexas, e saber que há distinções entre variedades, clones, biotipos e fenótipos é crucial para entender o passado, o presente e o futuro destas variedades, da própria uva e do seu mais nobre produto, o vinho. Vamos a isso.
Clones, biotipos e fenótipos
Pois então entramos em algo mais… sensível. Clones, biotipos, fenótipos, mutações. Há muita confusão nesses tópicos, pois de fato é algo novo e que não é tão simples de entender. Eu não sou geneticista. Acredito que você, leitor(a), também não é. Mas antes disso vamos falar mais um pouco da nossa plantinha favorita. Pense em algo resiliente e mega adaptável. Essa é a videira.
Nenhuma outra planta se adaptou de forma tão a uma enorme variedade de climas e latitudes conforme as migrações do homem, que espertamente sempre a levava a tiracolo. É uma das mais mutáveis de todas as plantas domesticadas.
Seus genes são capazes de se remodelar prontamente para produzir uma variedade quase totalmente diferente. Também é notável como existe uma propensão a mutações na própria planta, até na mesma variedade (Pinot por exemplo). Isso quer dizer que, de repente, um broto pode se desenvolver como um ramo com maior vigor, com folhas de tamanho ou forma diferente, ou até mesmo com uvas de uma cor distinta. Mover uma planta para uma região diferente, ou até para um vinhedo próximo com uma pequena variação de microclima, já é suficiente para encorajar tais mutações. E algumas variedades são muito mais sensíveis a essas adaptações, como a Sangiovese e suas centenas (senão milhares) de diferentes clones. Clones? Ou seriam biotipos? Que tópico confuso…. Vamos ver isso melhor.
Biotipos, também conhecidos como subvariedades, são videiras que compartilham o mesmo background genético, mas apresentam diferenças morfológicas e fisiológicas devido à adaptação a diferentes ambientes ao longo do tempo. Essas mudanças geralmente são muito sutis para serem detectadas por meio de análise genética e podem incluir variações no tamanho da baga, cor, potencial de rendimento e suscetibilidade a doenças. Por exemplo, a casta italiana Vermentino é encontrada com esse nome na Sardenha, na Ligúria e na Toscana, como Pigato em certas partes da Ligúria, e Favorita no Piemonte. Esses na verdade são biotipos (e não meros clones), justamente por apresentarem diferenças morfológicas significativas a despeito de serem geneticamente idênticas. Cada vez mais vê-se entre cientistas uma tendência a definir como biotipos comportamentos que antes eram tidos por clones.
Clone, ou o material da videira oferecido por um viveiro de videiras, é uma cópia genética de uma planta-mãe. Já o termo genótipo refere-se à composição genética específica de um indivíduo ou organismo.
Fenótipo, por fim, refere-se à aparência física de um indivíduo ou planta. As variedades de uva que apresentam diferenças morfológicas e fisiológicas significativas são caracterizadas pela alta variabilidade intravarietal, em que os membros da mesma variedade não têm a mesma aparência. Tais diferenças podem causar erros de identificação das castas, sendo a Nebbiolo um exemplo de casta com elevada variabilidade intravarietal por ter acumulado mais mutações ao longo do tempo quando comparada com castas que surgiram mais recentemente.
Concluindo…
Percebeu como não é simples conseguir identificar uma uva ou videira? E saber a origem dela, então? No fim, o que é bom saber é que essa discussão existe e quais os significados de cada uma das definições. Temos muitas lacunas em nosso conhecimento, em nossos registros – e algumas histórias podem não passar de mitos também. Mês que vem vamos falar sobre a origem de uma variedade específica bastante popular no Brasil: Primitivo (ou Zinfandel pros mais íntimos). Até lá!